O PSICODRAMA DA HUMANIDADE. UTOPIA, SERÁ?
SINOPSE- Moreno , em muitos de seu escritos , menciona a pretensão de tratar a humanidade. A autora, partindo da descrição dos inúmeros conflitos étnicos existentes no mundo moderno, advoga a necessidade de se pensar num trabalho terapêutico, quiçá utilizando o psicodrama, que trabalhe as “emoções grupais”. O orgulho de um povo, quando ofendido, busca incessantemente um ato de vingança que restitua a dignidade perdida, perpetuando multigeracionalmente os ódios de outrora. “Narcisismo grupal, luto e reparação enquanto mecanismo de massa, são alguns dos conceitos discutidos ao longo deste texto.
ABSTRACT- Moreno always mentioned the potential universal utilization of the psychodramatic techniques. The author discusses the urgent need to do so, in order to help many of the ethnic and political conflicts that emerges all over the word. The offended pride of a group will look for revenge during many generations. ” Group Narcissism”; “grupal mourning and reparation” are some of the concepts discussed in this article.
UNITERMOS- Narcisismo grupal, luto e reparação grupais; contaminação multigeracional
UNITERMS- Group Narcissism; grupal mourning and reparation; multigenerational contamination
PALAVRAS DE MORENO NO LIVRO “ QUEM SOBREVIVERÁ? “
“ Um procedimento verdadeiramente terapêutico deve ter por objetivo toda a espécie humana “. (1992:119, vol. I)
“ Acredito que a sociometria e o psicodrama terão lugar importante na história da sociologia, escrita no ano 2.000 . (1992: 87, prólogos)
“ Presumimos, talvez ingenuamente que se uma guerra pode espalhar-se pelo globo, deveria ser igualmente possível preparar e propagar uma sociometria mundial. Porém esta visão não surgiu do nada. Uma vez tratada com sucesso, toda uma comunidade, através de métodos sociométricos, pareceu-nos, ao menos teoricamente, possível tratar número infinitamente maior de tais comunidades pelos mesmos métodos– de fato, todas as comunidades que formam a sociedade humana.” (1992: 228-, ,vol. I )
” O experimento sociométrico acabará por tornar-se total, não apenas em expansão e extensão, mas também em intensidade, marcando , assim, o início da sociometria política”. (1992: 228/229 ,vol. I)
A pretensão moreniana de tratar toda a humanidade através do psicodrama sempre me pareceu exagerada e improvável, sonhos utópicos de um homem que além de aspirar importância e reconhecimento maiores do que teve, prognosticava fatos para o distante ano 2000 que jamais testemunharia.
Pois bem, acabo de voltar do 13º Congresso Internacional de Psicoterapias de Grupo em Londres. É agosto de 1998, muito perto do ano 2000. Volto pensando diferente, quero rever estas frases de Moreno, leio com atenção. Ouvi coisas neste encontro que , a toda hora, me remetiam a ele e escrevo este artigo para compartilhar com vocês estes meus recentes achados.
Impressionou-me, especialmente, o tema central das “key-notes”, grandes palestras com as quais se iniciavam diariamente os trabalhos do congresso. Os expositores, profissionais de muito destaque na produção científica mundial , pertenciam a uma inter – área de interesse que mesclava história, sociologia, antropologia, política e psicologia. Sua grande preocupação era conseguir compreender e conter o aumento das chamadas guerras políticas e étnicas .
O Instituto de Pesquisa pela Paz Internacional de Estocolmo estima que o número de Conflitos Armados Maiores se manteve estável desde 1986 — em torno de 30 em 25 localidades — embora tenham crescido sua intensidade e periculosidade. O que aumentou assustadoramente foi o número de Conflitos Menores, mais conhecidos como Terrorismo Étnico.
A palavra etnia vem do grego “ethnos” que significa companhia, pessoas ou tribo. Depois da Segunda Guerra Mundial , por iniciativa da ONU, adotou-se o termo “ etnia” em substituição ao termo “raça”, devido às conotações de inferioridade ou superioridade biológicas que os nazistas deram a esta palavra.
Porém palavras novas não exorcizam velhos problemas. A civilidade nacional que permitia a pessoas de diferentes culturas dentro de uma mesma nação viverem em paz juntas , foi vencida pelo ódio étnico e milhões de pessoas tem morrido nestes “ confrontos entre vizinhos”.
Na Iugoslávia , por exemplo, estima-se que 65.000 pessoas já tenham morrido; na Bosnia-Herzegovina 55.000 ; na Croácia cerca de 10.000 e em Ruanda as mortes já chegam a um milhão. E quantos será que estão morrendo nos conflitos do Afeganistão, Algéria, Angola, Azerbaijão, Bangladesh, Burundi, Camboja, Colômbia, Geórgia, Guatemala, Índia, Indonésia, Irã, Iraque, Israel, Libéria, Birmânia, Peru, Filipinas, Somália, SriLanka, Sudão, Turquia, Inglaterra e Zaire?
Chama atenção a barbárie destes confrontos onde os direitos humanos são completamente ignorados, o genocídio é um objetivo freqüente e nem mesmo se adotam os códigos de ética das guerras tradicionais. Não mais se fala em “ extermínio de um povo”. Agora “ limpeza étnica” é a palavra de ordem e visa não deixar vivo ninguém que pertença a outra etnia ou que se lembre das terras e casas que possuía. Décio de Freitas ( 1998 ) mostra que muitos dos que guerreiam e se matam podem ser étnicamente semelhantes na história, no sangue , na língua e até na religião. A intolerância se concentra não nas diferenças macroscópicas mas em sutis alianças. A lealdade é para com o pequeno grupo étnico e não para com a grande nação. Clama-se vingança por ofensas passadas; busca-se, transgeracionalmente e a qualquer custo , resgatar a dignidade do próprio povo.
E o que Moreno tem a ver com isso, vocês devem estar se perguntando? Pois bem o velho sonho de tratar a humanidade está em voga na Europa . Pelo menos daquilo que pude extrair dos livros de alguns destes palestristas ilustres.
Por exemplo o psiquiatra turco Vamik Volkan (1997) afirma que a partir destes conflitos todos, criou-se uma demanda crescente para uma modificação do conceito de trabalho diplomático, que agora inclui a dimensão psicológica dos eventos e não apenas o caráter econômico e social dos mesmos.
A maior parte dos conflitos étnicos envolve questões complexas ligadas à identidade dos grandes grupos envolvidos e não pode ser negociada apenas pela diplomacia política. Tampouco funciona nestas questões a diplomacia internacional tradicional, pois não se trata de dois povos distintos lutando, mas de lutas dentro de um mesmo povo. Donald Horowitz ( Volkan, 1997) , cientista político, defende a idéia de que a quantidade de paixão expressa nos conflitos étnicos demanda uma explicação que leve em conta as emoções.
IDENTIDADE DE GRANDES GRUPOS
Os seres humanos sempre viveram em grupos emocionalmente ligados, tais como clãs ou tribos. ‘Grupo Étnico” é o nome contemporâneo para este fenômeno e define um conjunto de pessoas que possuem em comum : lugar de origem, ancestrais, tradições, crenças religiosas e linguagem. Além destas características , as pessoas de uma mesma etnia compartilham também um mito de inauguração, espécie de história grandiosa sobre o início do grupo, que inclui um conceito de continuidade bio-genética generacional e confere características especiais e únicas para este grupo, tornando-o diferente de todos os demais.
A percepção da própria tribo ou grupo como humana e superior a outras , vistas como sub-humanas , é um fenômeno universal que intriga os antropólogos. Os chineses antigos, por exemplo, chamavam-se a si mesmos de pessoas e às outras raças de Kuei, espíritos caçadores. Os apaches americanos chamam-se a si mesmos de indeh (pessoas) e os outros de indah ( inimigos). Em inglês o termo bárbaro refere-se a estrangeiro.
Inicialmente as tribos vizinhas competiam por itens necessários à sobrevivência tais como comida e água. Com o tempo, e assim que a sobrevivência se vê assegurada, outros itens começam a ser alvos da competição, itens supérfluos tais como peles e bens materiais, mas que engrandecem a auto-estima de quem os possui e passam a representar símbolos de poder. Estes símbolos por sua vez, ganham cores , bandeiras, músicas e outros indicadores culturais da identidade compartilhada e da estória mítica do grupo.
A etnicidade[6] é um aspecto da identidade pessoal ; ela é uma identidade social, não biológica e vai além de considerações genéticas . Sua peculiaridade maior é de apenas ser sentida quando um grupo interage com outro, como se fosse uma possibilidade em potencial que só se manifesta em circunstâncias de interação com o diferente. Um certo grau de etnocentrismo é comum e saudável em todos os grupos mas, perigosamente, pode desandar para um tipo de racismo.
PERSONALIDADE E PSICODINÂMICA DOS GRUPOS ÉTNICOS
Muito pouco sabemos ainda sobre o funcionamento de grandes grupos. Freud ( 1920: 2563-2610) fez algumas tentativas de estudar os fenômenos grupais e antes dele autores como o sociólogo francês Gustavo Le Bonn ( Freud, 1920) e o americano Mac Dougall (Freud, 1920) também tentaram algumas explicações. Eles constataram que quando o indivíduo está num grupo perde, , sua identidade habitual , havendo um incremento da emocionalidade e sugestionabilidade e um decréscimo da parte intelectual e cognitiva.
Freud atribuiu estes fenômenos à libido que seria a responsável pela formação e manutenção dos vínculos de amor num grupo. Para ele a mente grupal seria estruturada de forma semelhante aos padrões da família ; o amor entre os membros do grupo e a capacidade de se influenciarem mutuamente seriam proporcionais ao amor e respeito conquistado pelo líder desta família. Quanto às hostilidades entre os membros elas são atribuídas à má resolução das questões edípicas.
Volkan acredita que esta explicação esteja incompleta e pouco esclarece a questão da agressividade presente nas relações humanas e porque um forte sentimento de identidade grupal leva às vezes a atos brutais de violência . Segundo ele, o próprio Freud foi cauteloso em aplicar suas descobertas da psicologia individual ao funcionamento grupal. Em 1932 Albert Einstein , num artigo chamado “Porque a Guerra?” perguntou a Freud se havia alguma forma de se evitar as guerras . Freud se mostrou pessimista e disse que não há formas de eliminar a inclinação agressiva do ser humano. Muito outros psicanalistas têm feito contribuições para a psicologia de grandes grupos, sem chegar entretanto a explicações mais abrangentes e satisfatórias.
Por sorte, novos esforços tem sido feitos contemporaneamente. Em 1978 o presidente do Egito Anwar el –Sadat fez um convite indireto aos profissionais de saúde mental para trabalharem juntamente com diplomatas, buscando compreender e desfazer a barreira psicológica que , segundo ele, constituía 70% do problema Arabi-Israeli. Foi obtida uma verba junto ao Fundo das Nações Unidas e constituído um pequeno comitê , dentro da Associação Americana de Psiquiatria , que realizou reuniões em vários locais da Europa. De 1980 a 1986 , psiquiatras e diplomatas americanos , israelenses, palestinos e egípcios dividiram-se e participaram de pequenos sub- grupos de discussão, visando facilitar o diálogo entre as partes em litígio. Este trabalho trouxe insights novos e valiosos sobre o comportamento e a identidade de grandes grupos emocionalmente conectados.
LUTOS CULTURAIS NÃO RESOLVIDOS E TRANSMISSÃO TRANSGERACIONAL
As perdas vividas por uma cultura inteira, tais como , assassinato de líderes amados, catástrofes naturais que redundam em elevado número de mortes, domínio, aprisionamento e humilhação de um grupo étnico por outro, etc. , também demandam um processo de luto e elaboração sob pena de se tornarem perenes, caso este procedimento não seja levado a efeito com sucesso.
A cultura comunica sua dor de formas peculiares. Usa, por exemplo, os meios de comunicação de massa para reportar o ocorrido ou criar anedotas como forma de elaborar a tragédia; executa ritos culturais para comemorar os aniversários destes eventos traumáticos ; constrói, freqüentemente , monumentos de pedra e metal resistente para simbolizar a força com que determinados fatos jamais serão esquecidos. Quando todo uma geração é dizimada , submetida e impedida de chorar e ritualizar sua perda, , como no caso do holocausto na 2º Guerra Mundial ou dos índios Navajo, expulsos de suas terras pelos colonizadores americanos em 1864, aqueles que sobrevivem á tragédia são encarregados de transmitir seus sentimentos aos descendentes, como se as gerações posteriores pudessem se encarregar do trabalho de luto e elaboração impossibilitado aos seus antepassados.
De certa forma nada fica esquecido na cultura. Analógicamente, poderíamos falar de um inconsciente coletivo no estilo junguiano[7], ou de um co-inconsciente, lembrando Moreno ou ainda de estresse pós-traumático[9] ¾ enfim , mecanismos de grupo que se encarregariam de represar e transmitir transgeracionalmente , de forma ainda desconhecida da ciência, os ressentimentos , traumas e injustiças sofridos numa determinada geração.
Anne Ancelin Schutzemberger (1997) mostra numerosos exemplos clínicos do que chama de “ síndrome de aniversário” , onde numa mesma família, um determinado fato trágico, por exemplo, um acidente que redunda em morte, se repete por várias gerações sempre na mesma data. Interessante também seu relato dos “ segredos familiares” que retornam encriptados em determinado paciente eleito de uma geração posterior, que, com seus sintomas , relata o que era indizível e impensável anteriormente.
Ivan Boszormenyi-Nagy ( 1983) introduz o conceito brilhante de “ lealdade invisível” , advogando que as relações familiares e culturais incluem a dimensão da justiça e da equidade dentro da família e da cultura. Sintomas e repetições seriam formas desesperadas de buscar o restabelecimento de uma ética das relações transgeracionais.
Deste autor também advém o conceito de “parentificação”, processo de inversão de dependências, passando os filhos a cuidar dos pais, através de um implícito e complexo sistema de contabilização de méritos e dívidas , onde tudo o que se recebeu de cuidados, carinho, cumplicidade deve ser devolvido com o tempo. As injustiças sofridas pela família também fazem parte desta contabilidade e cada membro carrega o encargo de , a seu modo , vingar , esquecer, cobrar estas injustiças. Não há jeito de escapar destas obrigações familiares sem carregar consigo uma sentimento de “culpabilidade existencial amorfa e indefinível”
Interessante perceber também que apesar da palavra lealdade derivar do latim “legalitas”, referente à lei, seu sentido real se refere a uma trama invisível de expectativas familiares, que nem sempre manifesta justiça ou legalidade. Os indivíduos que não aprenderam o sentido de justiça dentro das relações familiares tenderão a desenvolver um critério distorcido de justiça social.
NARCISISMO, RESSENTIMENTO, VINGANÇA E FÚRIA GRUPAIS
Será que poderíamos considerar a existência de um sistema narcísico grupal, através do qual a consciência de valor individual estaria conectada com o valor do grupo ao qual se pertence e, por decorrência, ataques à auto-estima deste grupo estimulariam respostas de fúria e vingança, com o objetivo de resgatar a dignidade perdida ? Sabemos que isto é verdade a nível individual. Eu mesma ( Cukier, 1998) afirmei anteriormente que “crianças abusadas na infância são bombas-relógio para o futuro”, pois tratarão de revidar os abusos quando tiverem o poder nas mãos.
Parece que em relação a grandes grupos vários fatores devem ocorrer paralelamente para culminarem numa reação de fúria vingativa. A presença de um líder fanático, por exemplo, ele mesmo com uma estória infantil de abusos e negligência, é um destes fatores. Alice Miller (1993) mostra , com muita propriedade , que por trás de todas as grandes catástrofes da humanidade houveram líderes sádicos, machucados narcísicamente por pais negligentes e abusivos que não souberam administrar suas necessidades básicas. É o caso de Adolf Hitler, Stalin e Nicolae Ceausescu — ditador da Romênia , que foram covardemente espancados e humilhados na infância.
Outra variável predisponente é ocorrer ou ter ocorrido num passado lembrado ainda, um ataque ao “orgulho do grupo ”. Segundo Kohut (1988) a coesão grupal , se dá tanto através de ideais como através de uma grandiosidade compartilhada e os grupos apresentam transformações regressivas no domínio narcísico sempre que esta grandiosidade for atacada. Estas transformações regressivas do narcisismo grupal implicam em agressão , raiva, fúria e vingança narcísicas.
Há também fatores enraizados na própria cultura, que favorecem reações agressivas como , por exemplo, os sintomas de auto – repudio ou vergonha.. Ë o caso dos nipônicos que desdenham os traços fisionômicos da própria raça e se submetem a cirurgias plásticas para mudança da dobra ocular , desejando possuir características dos grupos majoritários , econômica e culturalmente dominantes.
Hugo Bleichmar ( 1987) chama de “possessões narcísicas do ego “ a estes objetos ou traços identificatórios que se quer possuir para que nos confiram seu valor intrínseco, por exemplo, carros , jóias, olhos, etc. Mostra também, como a cultura oferece vários termos para nomear a realidade, que em seu bojo carregam crenças e atributos identificatórios e valorativos ao sujeito. É o caso dos adjetivos possessivos, no caso da herança genético familiar. Literalmente as palavras —meu, teu, nosso — estabelecem uma ponte entre os objetos e seus possuidores. Ele afirma: “A criança recebe o “meu” com a significação que na palavra dos pais tem “o meu filho”: o narcisismo dos pais requer que o filho-falo seja visto como um produto absoluto deles. Com isso, “o meu filho” significa o filho que por havê-lo criado é minha possessão e, fala, por isso de mim”.
Além disso há regras lógicas no inconsciente individual , por exemplo a lógica da inclusão de classes que equiparam a identidade e o valor de todos os elementos da mesma classe. Entende-se assim porque, apesar das brigas impiedosas dentro de uma mesma família, se alguém alheio ao sistema critica algum de seus membros, por ser este sentido como possessão narcísica do ego , o criticado passa a ser imediatamente defendido pelos demais.
Para Anne Ancelin Schtzemberger (1997) o ressentimento grupal é um fenômeno conectado com a injustiça sofrida pelo grupo ou por algum, de seus membros. O componente da obrigação moral de lealdade faz com que todos os elementos do grupo tenham o dever de buscar a equidade e a justiça, sendo a culpa a penalidade para quem prescindir deste dever.
“Olho por olho, dente por dente”– é esta justiça Taliônica[10] que rege o acerto de contas de nossa sofrida humanidade. No final, acabaremos , provavelmente, todos cegos e desdentados. Será que Moreno pode nos ajudar?
SUGESTÕES MORENIANAS PARA TRATAR A HUMANIDADE
Moreno criou o sociodrama para tratar grupos e problemas coletivos e seu livro “Quem sobreviverá? é totalmente voltado a formular e testar formas de viabilizar este projeto. Define ( 1975:411 e 1992: 80) o sociodrama como :“ um método de ação profunda que investiga e trata as relações intergrupais e as ideologias coletivas”.
Ele fez muitas tentativas de teorizar a respeito do comportamento grupal. Propunha uma diferenciação entre o processo de identidade e de identificação. Diz (1975: 442) : “ A identidade deveria ser considerada à parte do processo de identificação. Desenvolve-se antes deste último na criança pequena e atua em todas as relações intergrupais da sociedade adulta.
Propõe (1975:442) o termo “identidade de papel”, para nomear aquilo que contemporaneamente chamaríamos de identidade étnica: “Os negros consideram a si mesmo um coletivo singular, o negro., uma condição que submerge todas as diferenças individuais,…… A essa identidade chamaremos identidade de papel”.
Várias vezes falou da diferença entre a catarse no sociodrama e a catarse no psicodrama, enfatizando que no sociodrama busca-se tratar as questões referentes à identidade ( 1975 : 424): “ O protagonista no palco não está retratando uma dramatis personae, o fruto criador da mente de um dramaturgo individual, mas uma experiência coletiva. Ele é um ego-auxiliar, é uma extensão emocional de muitos egos. Portanto, numa acepção sociodramática, não é identificação do espectador com o ator que está no palco, presumindo-se a existência de alguma diferença entre aquele e o personagem que este retrata.Trata-se de identidade “.
Moreno ( 1992:130, vol. III ) não tocou na questão do narcisismo grupal mas chegou perto ao admitir que a inveja poderia ser um motor de ressentimento entre grupos. “ …..A população judia na Alemanha pode ter produzido mais líderes individuais do que proporcionalmente seu nível populacional permitiria, ….Como a maioria do grupo era alemã , nós podemos imaginar os sentimentos de ressentimento que surgiam entre os líderes alemães, juntamente com a convicção de que eles tinham um “ direito natural” maior do que os líderes judeus de dirigir essas massa de trabalhadores e fazendeiros alemães”.
Além disso , o próprio teste sociométrico , através dos cálculo das escolhas, rejeições e neutralidades, acaba por atingir em cheio o nó da questão narcísica, provocando reações muitas vezes catastróficas e que Moreno ( 1992: 202. II. vol.) apontou e tentou explicar. Referindo-se aos procedimentos sociométricos , afirma: …estes procedimentos deveriam ser acolhidos favoravelmente já que ajudam no reconhecimento e na compreensão da estrutura básica do grupo. Porém este não é sempre o caso. Encontram resistência e até hostilidade por parte de algumas pessoas…..
Moreno sempre se preocupou com os conflitos raciais e chegou até a formular a idéia de um quociente racial (1992: 260 ,II. vol.): “Da interação social dos membros e de sua expansividade emocional resulta uma expressão do grupo, seu ponto de saturação para determinado elemento racial contrastante, seu quociente racial”. Em “O problema Negro – Branco”- um protocolo psicodramático ele ( 1975: 425-452) discute com ousadia a situação do negro nos Estados Unidos e tece considerações teóricas importantes sobre os processos de discriminação racial e as contra-respostas que ele suscita. Também elaborou o conceito de ponto de saturação racial ( 1992:216 vol. III) , aonde expressa a idéia de que existe um determinado ponto além do qual uma população majoritária fica saturada de uma população minoritária, favorecendo os fenômenos de discriminação racial.
Na verdade, desde “As Palavras do Pai” parece ter um firme propósito de , ao invés de arrancar olhos e dentes, como Talião propunha, apenas trocar de olhos e simbolicamente ocupar e compreender o lugar existencial do “outro, inimigo, diferente” . É o que ele faz nesta Oração do Nazista ( 1992: 240), mostrando ser , ele mesmo, capaz de inverter papéis até com inimigos do povo judeu ao qual pertencia.
“O Deus,
nossa raça é como a verde e saudável grama,
As outras raças são como as ervas daninhas, que sufocam a grama,
E para que ela se acabe
Que as arranquemos pela raiz e as destruamos!”
Também a sua conceituação de Axiodrama ( 1992:60), sociodrama focado nas questões de ética e de valor, mostra uma preocupação com o contexto comunitário, na medida em que propõe discutir e dramatizar as assim chamadas “verdades eternas, por exemplo; justiça, beleza, verdade, perfeição, eternidade, paz, etc.
Moreno era um homem profundamente conectado ao seu tempo , mas também profundamente crítico às conquistas deste tempo. Ele, por exemplo, desqualificava nossa era super- robotizada , cheia de aparatos técnicos sem vida e espontaneidade , que substituem as relações humanas. Entretanto não hesitou em utilizar esta mesma tecnologia para divulgar seus métodos sociátricos. Fez uso do cinema e , sugeriu, num capítulo escrito junto com John K. Fischel no final de seu livro “Psicodrama”, formas possíveis de se adaptar os métodos de espontaneidade aos recursos da televisão. “ É aconselhável organizar sessões psicodramáticas a serem transmitidas ao mundo desde uma estação de televisão. …… É aconselhável organizar jornais vivos e dramatizados que sejam transmitidos ao mundo através das emissoras de televisão. Isto é mais saudável que o usual noticiário fotográfico de eventos; é um instrumento por meio do qual o gênio vivo e criativo pode, neste planeta, comunicar-se direta e instantaneamente com os seus semelhantes. “( 1975: 482-483).
Ele era contra as bonecas, brinquedos mecânicos, mamadeiras assépticas, enfim contra a tecnologia . Fico entretanto pensando que , se ainda estivesse entre nós, sem dúvida ele acharia uma forma de usar a Internet como fórum de discussões, tribuna livre e , porque não imaginar dramatizações via satélite, onde arque – inimigos pudessem trocar de papel ou descobrir que o medo, a dor, o horror, a solidão, a humilhação, o orgulho……..todos estes são atributos compartilhados por toda a espécie humana e não apenas, por uma especial tribo.
CONCLUSÃO
Eu gostaria de terminar este artigo rendendo homenagens àqueles , dentre nós brasileiros, que têm se empenhado na direção sociátrica moreniana. Me refiro ao crescimento e à criatividade dos vários grupos e escolas de Teatro Espontâneo, grupos que fazem trabalhos sociodramáticos com comunidades rurais e populações carentes, com minorias discriminadas por problemas de saúde e pobreza , além dos serviços comunitários que trabalham com a questão da violência doméstica. Também me encantam as possibilidades de usar o teatro como meio de trabalhar grandes grupos , enfim acho que nós brasileiros , temos algo da ousadia moreniana necessário para levar adiante este projeto social.
Falo em ousadia porque de fato é preciso coragem para fazer um trabalho deste tipo . Volkan (1997) com seu grupo de diplomatas , políticos, historiadores e psicanalistas realiza poucas e pequenas reuniões verbais, fechadas, com audiência restrita. Ainda assim, a leitura de seu livro nos mostra, quão tenso e perigosos é o clima destes encontros.
Podem vocês imaginar se confrontos étnicos ocorressem pela TV, sob a direção de algum psicodramatista habilidoso e se milhões de pessoas pudessem inter- atuar, mandando perguntas, argumentos, fatos. Espanto-me apenas em pensar!!
Porém quantos de nós , teríamos coragem de dirigir tais sociodramas psico-políticos? Ser diretor de sociodramas e dirigir grandes platéias é tarefa para poucos. Na realidade nenhuma escola de psicodrama nos prepara suficientemente. Moreno nos dá idéias mas temos muito que aprender .Já testemunhei sociodramas caóticos, diretores perdidos e envergonhados e, até mesmo , sapatadas numa grande platéia raivosa . Grandes grupos, tal como Freud os descreveu, parecem funcionar como um animal selvagem a ser domado e a palavra usada na comunicação individual , não se presta para articular sua mensagem. Talvez aplausos, ôlas como nos campos de futebol, talvez tenhamos que pedir ajuda a profissionais de comunicação de massa .
Não sei de que forma exatamente, mas tenho a sensação de que temos que aprender em grupo como lidar com grandes grupos. A experiência de estudar Moreno, um escritor e autor tão complexo, no GEM [11], em grupo, pedacinho por pedacinho, com paciência e persistência, me ensinou que tudo é possível, quando um punhado de pessoas realmente quer.
Volkan (1997 ) sugere, no final do seu livro que talvez seja preciso articular grandes pedidos de desculpas interculturais, intergeracionais e multigeracionais. Há pouco tempo assistimos Michail Gorbachev pedir desculpas em nome da Rússia pelos massacres ocorridos na Polônia; também a Igreja Católica se desculpou por sua apatia diante do extermínio dos judeus na 2º Guerra Mundial.
Concluindo, eu pediria desculpas a Moreno……………..por tantas vezes tê-lo considerado um tolo sonhador , sozinho na montanha, olhando um futuro que só ele vislumbrava . Talvez ele seja mesmo um tolo……………mas não é o único. Há muitos tolos como ele tentando ajudar as Nações Unidas para que possamos ter algum FUTURO, ao menos.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
- Bleichmar, H.(1987)-O Narcisismo – Estudo e Enunciação da Gramática Inconsciente- Editora
- Cukier,R. (1998)- Sobrevivência Emocional : as feridas da infância revividas no drama adulto, Editora Ágora, S.Paulo.
- Décio de Freitas (1998) ,“ Máscaras do Néo Racismo” , Jornal “O Globo”, 9 de agosto de 1998, Porto Alegre.
- Freud, S.- “Psicologia das Massas e análise do Ego ”- tomo III- obras completas.
- Nagy Boszormenyi I. –Lealtades Invisibles (1983)- Editores Amorrortu- Buenos Aires
- Miller, A. (1993)- Breaking Down the Wall of Silence, Meridian Book, New York
- Moreno, J. L ( 1975) – Psicodrama, São Paulo, Cultrix.
- Moreno, J. L. (1992) –As palavras do Pai- Editora Psy, Campinas, São Paulo.
- Moreno, J. L.-(1992) Quem sobreviverá? Fundamentos da Sociometria, Psicoterapia de Grupo e Sociodrama, Dimensão Editora, Goiânia.
- Kohut, H. (1988)- Psicologia do Self e Cultura Humana, Edi.t. Artes Médicas, Porto Alegre
- Volkan, Vamik ( 1997) – Bloodlines – from Ethnic Pride to Ethnic Therrorism, Farrar, Straus and Giroux, New York.
- Samuels, A. (1988)- “Dicionário Crítico de Analise Junguiana”, Edit. Imago, R.J.
- Schutzemberger, Anne A.(1997)-“ Meus antepassados”, Editora Paulus.
[1]Psicóloga, psicoterapeuta , psicodramatista , terapeuta de alunos professora-supervisora pela SOPSP pelo Instituto de Psicodrama Jacob Levy Moreno-SP.
[2] Keynote= palestras – chave
[3] Conflito armado maior é definido como conflito prolongado entre forças militares de dois ou mais governos e que produzam acima de 1000 mortes.
[4] Ataques terroristas inspirados em diferenças étnicas e/ou religiosas, liderados por indivíduos ou pequenos grupos.
[5] A diferença entre nação e grupo étnico é que a nação implica numa política autônoma e no estabelecimento de fronteiras, ou pelo menos organizações que criam papéis, posições e status. A maioria das nações é formada por mais de um grupo étnico e alguns estudiosos chamam os grupos étnicos de sub-nações.
[6] Na Iugoslávia, por exemplo, são pessoas do mesmo sangue, mas de diferentes religiões que se matam .
[7] O inconsciente coletivo de Jung é um conceito mais amplo do que o de inconsciente formulado por Freud. Ele inclui , além da experiência infantil reprimida, a experiência acumulada filogenéticamente pela espécie humana e opera independentemente do Ego, por causa de sua origem na estrutura herdada do cérebro. Suas manifestações aparecem na cultura como motivos universais que possuem grau de atração próprio.( Samuels A,1988:104/105)
[8] Moreno( 1975:31) descreve o co-inconsciente como um estado experimentado simultaneamente pelos participantes de determinada vivência e que portanto também só pode ser reproduzido e representado em conjunto.
[9] A desordem do estresse pós-traumático consiste numa reação debilitante que se segue a algum evento traumático. Muito freqüente em ex – combatentes de guerra, também inclui reações a acidentes sérios, desastres naturais, ataques violentos tais como estupro e tortura. A pessoa acometida apresenta persistentes memórias dos fatos mais chocantes, que intrusivamente assolam seu o pensamento na forma de pesadelos ou fantasias diurnas. Experimenta também problemas de sono, depressão, irritabilidade, falta de pertinência, solidão.
[10] Lei de Talião , pertence ao Código de Hammurabi, Rei da Babilônia em 2500 BC, pela qual a pena se graduava conforme o dano produzido pelo agente
[11] GEM – DAIMON – Grupo de Estudos de Moreno na clínica Daimon em São Paulo