Artigos resume um pouco da procura profissional da psicóloga Rosa Cukier. Ela sempre se interessou por questões ligadas ao abuso infantil,desordens de personalidade narcísicos e borderlines e como estas questões influenciam o exercício pessoal e profissional na vida adulta.
Os seres humanos exercem um enorme poder uns sobre os outros, um poder de vida ou morte. Do ponto de vista fisiológico , os seres humanos se reproduzem de forma muito semelhante a todos os animais mamíferos e, nascem quando saem do útero materno. Do ponto de vista psicológico, entretanto, sua reprodução é totalmente original e peculiar. Psicológicamente o ser humano nasce aos poucos e nem sempre totalmente, dependendo de sua garra pessoal e da sorte de encontrar pais que saibam administrar suas necessidades básicas.
Por necessidades básicas entendendo aquelas das quais depende a sobrevivência física e psicológica da criança, e elas são de duas ordens:
– FÍSICAS – o bebê humano nasce extremamente frágil necessitando de cuidados físicos ( alimentação, higiene, saúde, calor, estimulação tátil, etc.) sem os quais morre. O foco é sobre o Quê é feito à criança.
-EMOCIONAIS- a necessidade emocional básica do ser humano e sem a qual ele não sobrevive Psicológicamente é a necessidade de dependência, de poder contar com o outro. O bebê humano nasce completamente despreparado e só será autônomo, com recursos internos com os quais possa contar, depois de muitos anos ( na classe média de nossa cultura urbana, só após a adolescência). Aqui o que importa não é ter as necessidades físicas atendidas, mas Como isto é feito.
Além disso , a primeira etapa de nossa vida é pré-verbal e tudo o que ocorre conosco depende da decodificação verbal e emocional que nossa mãe/ ou cuidador fizer. Sem alguém que possa espelhar nossas necessidades e emoções não teremos jeito de saber quem somos. Por outro lado a forma como esta pessoa decodifica nossas mensagens acaba constituindo aquilo que somos, e ela o faz de acordo com seu próprio patrimônio de vivências emocionais.
Este primeiro cuidador ou cuidadores funcionam como uma espécie de ponte relacional entre a criança e o mundo e ocupam, num primeiro momento o lugar que o” EU”* da criança ocupará mais tarde. Nós somos ” NÓS” antes de sermos “EU”, ou seja é o relacional, sobretudo a relação que estabelecemos com os nossos primeiros cuidadores, a pedra inaugural da nossa identidade ( Erikson,E.,:1976) ** e também refletirá quais serão as nossas expectativas de relacionamento com o mundo .
Crianças abusadas nestes cuidados básicos e fundamentais são como bomba relógio para o futuro. O abuso repercutirá por toda a sua vida pessoal e profissional.
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Sumário: o objetivo deste trabalho é discutir a insalubridade das profissões de “ajuda ao outro” e a relação entre o estresse do terapeuta e o abuso profissional. A autora questiona se a escolha da profissão é realmente uma escolha ou um destino anunciado desde a infância, através das disfuncionalidades da família primária do psicoterapeuta. São também discutidas outras forças sistêmicas que atuam sobre os profissionais destas áreas, tais como: pressões advindas do cliente e de sua patologia, condições adversas de trabalho, má inserção sociométrica do profissional, demandas de afeto e atenção da família atual, pressões da família de origem, etc. A necessidade do psicoterapeuta advogar em causa própria e cuidar bem de si mesmo é enfatizada enquanto condição “si ne qua non” para realmente “ajudar o outro”.
Unitermos: Estresse Pós-traumático Secundário; Profissão de Psicoterapeuta, Abuso Profissional .
Summary: the purposes of this article is to discuss the fact that psychotherapists as any heath professional, by the nature of their duties, responsibilities, are at risk of experiencing secondary trauma stress. The author describes many stress factors, like the client’s pathology, the family of origin issues, the present family’s demands of attention and care, the sociométric problems, the work system pressures, etc. Prevention and self-care are the final topic of this article.
Uniterms: Secondary Traumatic Stress Disorder; Psychotherapy; Professional Abuse.
Muitas vezes amigos e conhecidos meus , leigos na temática das psicoterapias, me perguntam se não levo os problemas dos meus pacientes para casa. De algum modo parecem pensar que nós, psicoterapeutas, saímos preocupados do consultório e mal podemos dormir carregando os problemas alheios.
Sempre respondi tranqüilamente dizendo que não é exatamente assim, pois, para que alguém seja terapeuta se exige um treinamento profissional rigoroso que habilita o profissional a separar os conteúdos que são seus daqueles que pertencem aos seus pacientes.
Boa resposta talvez, para leigos – que assim continuam igualmente leigos porém profundamente admirados desta nossa habilidade asséptica – mas muito incompleta se quisermos realmente adentrar a natureza profunda desta questão. Até mesmo Freud ( 1910: 1565 ) que definiu o fenômeno da contratransferência, como ” a resposta emocional do terapeuta para com seu cliente”6, foi superficial nesta análise.
Mais recentemente, entretanto, e em função dos estudos sobre estresse profissional e violência e suas sequelas traumáticas, um número crescente de autores tem descrito um tipo de doença bio-psico-social que acomete pessoas que cuidam de pessoas traumatizadas. Esta “doença” tem muitos nomes na literatura ( Figley, 1995: 9)7 : ” Estresse Pós Traumático Secundário” ; “Vitimização Secundária ”; Co-vitimização; “Traumatização Vicariante”; “Contágio Emocional “; “Efeitos Generacionais do Trauma “; “Síndrome do Salvador; “Fadiga da Compaixão”; “Síndrome do Terapeuta Queimado (burnout) ”, etc.
O foco do estudo destes autores não é o paciente e como ele pode ser prejudicado pelo terapeuta, mas ao contrário, como a profissão de psicoterapeuta pode ser insalubre e ter um custo pessoal ao próprio terapeuta .
Existem semelhanças entre os diferentes quadros de estresse profissional, sobretudo quando o estresse é relacionado com excesso e más condições de trabalho. Mas há características específicas de insalubridade que ocorrem nas profissões de ajuda ao outro e é nesta especificidade que eu quero focar este artigo. Tomar contato com o trauma alheio e tentar ajudar pessoas traumatizadas de alguma forma provoca um estresse profundo na pessoa que cuida e ironicamente, tanto mais sensível e dedicada ela for mais será vulnerável a este efeito-espelho da dor alheia.
Neste sentido escolhi o termo – Síndrome do Stress Pós-Traumático Secundário – pois , a meu ver é o que melhor expressa o que ocorre na área das psicoterapias e , Fadiga do Psicoterapeuta – como o nome popular que melhor se adapta à versão em português.
O QUE É ESTRESSE PÓS- TRAUMÁTICO SECUNDÁRIO
O Manual Estatístico e Diagnóstico- DSM III da Associação Americana de Psiquiatria( 1989,264-267)8incluiu pela primeira vez em 1980, o diagnóstico de Desordem do Estresse Pós – Traumático (DEPT), para descrever sintomas que afetam pessoas que passaram por um acontecimento psicologicamente doloroso. Incluem-se nesta categoria acontecimentos fora da faixa habitual da experiência humana, que representam sérias ameaças à vida da pessoa ou a de seus filhos e parentes próximos, tais como desastres naturais ( terremotos, acidentes) ou desastres deliberados ( tortura abuso de poder).
Este manual também esclarece que o trauma pode ser vivenciado diretamente ou secundariamente através da tomada de conhecimento de ameaças e danos à integridade física de amigos, parentes ou pessoas próximas.
O DEPTS – Desordem do Estresse Pós Traumático Secundário pode então ser definido como os comportamentos e emoções naturais resultantes da tomada de conhecimento de eventos traumatizantes experimentados por outros significativos. Consiste num processo de exaustão emocional gradual , relacionada a um trabalhar excessivo, mas que não se resolve com férias apenas . É uma erosão gradual do espírito do terapeuta e envolve uma perda de confiança e fé na própria capacidade de ajudar. Ayala9 Pines (1993: 386-402)) acha que somente os profissionais que tem altos ideais e motivações experimentam esta síndrome, como se ela representasse uma tensão entre a necessidade de ajudar do profissional e os problemas reais envolvido no trato de pessoas.
Kahill (1988)10 revendo a pesquisa empírica sobre esta síndrome identifica cinco categorias de sintomas:
1. Sintomas físicos ( fadiga e exaustão física, dificuldades de sono, somatizações como dores de cabeça, distúrbios gastrintestinais, gripes, etc.) 2. Sintomas emocionais (irritabilidade, ansiedade, depressão, culpa, sensação de impotência) 3. Sintomas comportamentais ( agressão , frieza, pessimismo, cinismo, abuso de drogas) 4. Sintomas profissionais (largar o emprego, trabalhar mal, faltar, chegar atrasado, trabalhar exageradamente sem folgas, etc.) 5. Sintomas interpessoais ( inabilidade de concentração, evitamento de contato com clientes e colegas, dificuldade com vida pessoal, etc. )
Duton e Rubinstein ( 1995: 85)11 acham que os indicadores deste quadro reproduzem, no terapeuta, alguns dos sintomas conhecidos da síndrome do stress pós-traumático:
1. Emoções de Estresse que incluem: tristeza, luto, depressão , ansiedade, medo e terror, raiva, ódio ,vergonha. 2. Imagens intrusivas do material traumático do cliente em pesadelos por exemplo ou em fantasias acordadas com flashes visuais. 3. Dificuldade de trabalhar com a dissociação do cliente 4. Queixas somáticas tais como: dificuldades de sono, dores de cabeça, problemas gastrintestinais, e palpitações 5. Comportamento aditivo e compulsivo incluindo abuso de drogas, alimentação e trabalho compulsivos. 6. Dificuldades com o funcionamento social cotidiano e com os papéis da vida privada, tais como: cancelamento de compromissos, uso decrescente de terapia e supervisão, atraso crônico, decréscimo de auto-cuidado, auto-estima e sentimentos de isolamento e alienação. 7. Excitamento fisiológico
QUEM É VULNERÁVEL À DEPTS?
Sinteticamente falando são potencialmente vulneráveis a esta traumatização por contágio, todos os profissionais que tem na empatia a sua ferramenta fundamental de trabalho e todas as pessoas que estão em contato regular com pessoas traumatizadas. São as “profissões de ajuda ao outro” tais como, bombeiros, policiais e militares, equipes de resgate e emergências, e todas as profissões ligadas à saúde, tais como enfermagem, medicina , e especialmente a psicologia e a psiquiatria .
Há muitas razões pelas quais estas duas últimas categorias profissionais sejam as mais atingidas, desde as razões ligadas à escolha da profissão, até as relacionadas às condições peculiares de trabalho.
SER TERAPEUTA: ESCOLHA OU DESTINO?
Alice Miller ( 1997: 30-35)12 acha que escolher uma profissão de ajuda ao outro, sobretudo a de psicoterapeuta é mais uma questão de destino do que de escolha propriamente dita. Ela se refere ao fato de que a maior parte dos terapeutas vem de famílias disfuncionais aonde, desde pequenos, foram os auxiliares de algum adulto menos potente que os convocava , direta ou indiretamente, para esta função. Treinados engenhosamente para estarem a serviço de alguém , desde a infância estas pessoas desenvolveram sua capacidade empática, sua sensibilidade que será seu instrumental preferido de trabalho no futuro.
A empatia , recurso essencial para acessar o cliente e planejar uma estratégia de ação, faz com que os profissionais troquem de lugar com as vítimas só que, assim fazendo, experimentam indiretamente os mesmos eventos que traumatizaram seus clientes. Além disso, o trauma não resolvido do profissional será ativado pelo relato de uma experiência similar vinda do paciente, especialmente se consistir de um trauma infantil, provavelmente pela maior vulnerabilidade da criança e pela rememoração da própria infância.
Muitos autores estudam as características das pessoas que escolhem estas profissões. Altos ideais e corações generosos são os traços destacados por Grosch e Olsen (1994 : IX) que concluem que os estudantes de psicologia e psiquiatria compõe um grupo de jovens otimistas e onipotentes desejosos não apenas por ganhar dinheiro, mas sim mudar o mundo e que acreditam que depois de um treinamento árduo e juntamente com compaixão e cuidado, poderão ajudar a transformar a vida das pessoas a quem estão cuidando.
Freudenberg, H. (1980)13 descreve o “Tipo-A” de personalidade que aglomera traços díspares tais como, alto idealismo e performance e baixa auto-estima, o que faz com que pessoas deste tipo trabalhem cada vez mais arduamente para se sentirem mais adequados. São profissionais excessivamente dedicados que tendem a exigir muito de si mesmos substituindo, muitas vezes, suas vidas sociais pelo trabalho. Alguns psicanalistas (Allen, 1979.,42,171-175)14 acreditam que o sucesso na carreira pode compensar desapontamentos infantis, como por exemplo rivalidades fraternas não resolvidas ou representar uma vitória edipiana tardia.
Em nosso meio, Victor C. Dias ( 1987: 187-195)15 chama atenção para a solidão do psicoterapeuta que, acostumado a privilegiar uma comunicação franca e sincera, desprovida das habituais dissimulações e hipocrisias sociais, acaba por restringir seus relacionamentos a pessoas que também se comunicam assim, ou seja, pessoas que também se submeteram à terapia . Esta é uma armadilha que resulta num terapeuta cada vez mais solitário e com uma tendência à arrogância, inadequação, e agressividade sociais.
O QUE ESTRESSA O PROFISSIONAL?
A teoria sistêmica busca entender a pessoa através do impacto que os sistemas que a envolvem têm em sua vida. O conceito de causalidade circular 16parece útil de se aplicar nesta questão da fadiga do terapeuta. ( ver fig. 1). Esta figura denota pressões vindas de vários sistemas de relações que envolvem o profissional de saúde:
FIGURA 1: O MULTISITEMA DE PRESSÕES SOBRE O PROFISSIONAL DE AJUDA
1- PRESSÕES DA FAMÍLIA ATUAL E VIDA PESSOAL
Alguns autores relacionam o sucesso na carreira com a meia idade do profissional, mostrando que , em geral, é em torno do 40 a 50 anos que o profissional atinge o seu ápice de efetividade. É também nesta idade que fatos da vida costumam trazer insatisfações, tais como: crises de casamento; envelhecimento, menopausa para as mulheres, casamento dos filhos, etc. Viver estas crises existenciais e, ao mesmo tempo, tratar de pessoas carentes e necessitadas pode ser exaustivo e estressante.
Além do mais há uma outra situação muito comum a nós psicoterapeutas e oportunamente descrita por Grosh e Olsen ( 1994) : enquanto passamos horas e horas ouvindo e sendo empáticos a outras pessoas, nossas próprias famílias e nós mesmos nos descuidamos. Depois de um longo dia vendo pacientes, quantos de nós se sentem realmente dispostos a lidar com as queixas cotidianas de nossos filhos e companheiros, ou ainda, quantos de nós tem disposição de fazer ginástica ou um refeição equilibrada? Num estudo conduzido por Michael Mahoney 17problemas como sobrepeso, dificuldades de conciliar o sono, exaustão generalizada, foram algumas das queixas freqüentes dentre os psicoterapeutas entrevistados.
Heróis sensíveis dos clientes nos transformamos, subitamente, em participantes relapsos de nossos sistemas familiares e cuidadores negligentes de nossos próprios corpos.
2- QUESTÕES COM A FAMÍLIA DE ORIGEM
Segundo Bowen e sua teoria da diferenciação do self, as pessoas lidam com as dificuldades de suas famílias de origem com uma variedade enorme de respostas em um contínuo que vai desde cortar a família fora até se fundir completamente com ela. Em nenhuma destas soluções extremistas realmente existe a diferenciação do self. A fusão ou o afastamento total deixam um trabalho para fazer que será replicado nas relações contemporâneas do indivíduo.
O ambiente profissional é extremamente propício de se tornar uma segunda família , aonde as pessoas em geral jogam ou tentam jogar papéis semelhantes àqueles da família de origem e aonde esperam terminar , mas só conseguem repetir, a dramática emocional de outrora .
3- PRESSÕES ADVINDAS DOS CLIENTES
Neste item, além das preocupações constantes com a evolução e gravidade dos casos que atendemos, quero ressaltar outro fator de desgaste profissional. Berkowitz (1987) 18 descreve o fenômeno da “atenção não recíproca “. O autor explica que os psicoterapeutas parecem preparados para trabalhar com a dor dos outros, com o estresse, mas parecem não preparados para a falta de reciprocidade do paciente. O dar constante numa relação de mão única sem feed-back ou sem sucesso perceptível é muito difícil para qualquer pessoa, principalmente quando se trata de uma pessoa que se tornou terapeuta para compreender suas próprias raízes disfuncionais.
O trabalho de um psicoterapeuta implica em um constante ” ligar-se e desligar-se afetivo” à outra pessoa. Muitas vezes no auge de um processo terapêutico que julgamos correr bem, o paciente abandona a terapia ou é tirado do processo pelos pais pagantes, de forma abrupta, sem explicações o que dificulta o trabalho de perda e luto que qualquer desligamento demanda. Sobretudo terapeutas jovens se ressentem profundamente destas perdas solitárias, deste súbito desinvestimento de uma relação que supunham forte e produtiva.
4- PRESSÕES NO TRABALHO, PROBLEMAS SOCIOMÉTRICOS, PRESSÕES ADVINDAS DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO
A profissão de psicoterapeuta contém algumas expectativas irrealistas em termos de curar pessoas, de forma rentável e elegante. Infelizmente as condições, o preço de nosso trabalho bem como nossa sociometria deixam, muito vezes, a desejar . Os colegas que trabalham em serviços comunitários compartilham frustrações de muitas ordens, desde o local e a freqüência de seus atendimentos até a falta de remuneração. “O cliente de instituição é aquele que não paga, freqüentemente não vem e não melhora” , dizia jocosamente uma citação sobre as razões do estresse.
E mesmo aqueles que trabalham em consultório particular amargam muitas vezes a falta de clientes pagantes, a baixa remuneração dos convênios médios, a instabilidade própria de uma carreira liberal carecendo , consequentemente, de gratificação com a vida profissional.
ABUSO PROFISSIONAL E FADIGA DO TERAPEUTA
O estresse do terapeuta pode resultar num atendimento negligente e abusivo do paciente. Há colegas que compensam a baixa remuneração por consulta, atendendo muitos pacientes num mesmo dia, ou organizando grupos com número excessivo de pessoas, em detrimento da qualidade do trabalho e de sua própria saúde pessoal. As expectativas irrealistas do terapeuta podem também abranger o crescimento do cliente. Certa urgência a em ser visto como útil e reassegurado de sua habilidade profissional pode transformar a compaixão do terapeuta em pressão para que o paciente efetive mudanças em sua vida.
Por outro lado, a piora do paciente pode levar o terapeuta a se sentir ineficiente e frustrado. Willian Groch e David Olsen (1994: 57)19 partindo das colocações de Kohut a respeito da questão narcísica descrevem a arrogância e o Complexo de Deus” de alguns psicoterapeutas. Acreditam que os psicoterapeutas que não tiveram suficiente espelhamento e empatia em seus primeiros anos infantis, podem compensar o seu desejo de ser apreciado e admirado utilizando o paciente para este papel complementar.
Neste sentido é paradoxal o objetivo das carreiras de ajuda ao outro: por um lado representam uma forma de transcender a si mesmo, por outro podem bem estar a serviço de obter a admiração alheia.
Lidar com pessoas que tendem a nos idealizar leva os dois tipos de erros mais comuns: 1- podemos assumir que elas estão corretas, que somos maravilhosos mesmos e continuar fazendo coisas para que elas continuem pensando assim; 2- podemos ficar tão ansiosos com esta carga de idealização que podemos fazer tudo para decepcioná-las agindo erradamente, cometendo erros estúpidos, ou nos colocando muito simétricos com o paciente.
Na realidade o papel de terapeuta confere certo poder que devemos estar preparados para assumir, sem exageros e durante algum tempo apenas. Nunca me esqueço de um supervisor que me dizia para faltar de vez em quando e nem sempre repor sessões. As imperfeições do terapeuta servem para ir corrigindo esta idealização excessiva do paciente.
CONCLUSÃO: PREVENÇÃO E TRATAMENTO
Terapeutas podem recorrer a vários recursos para cuidarem de sua saúde pessoal mas todos, invariavelmente implicam numa mudança da rotina de trabalho e de vida . Dosar melhor o número de pacientes atendidos, deixar espaços de tempo razoáveis para alimentação, exercício físico , etc. são alguns destes recursos que , por simples que pareçam , são tremendamente difíceis de serem implantados.
Não se trata apenas de trabalhar menos, é preciso substituir uma parte da confirmação financeira, profissional e narcísica que advém de uma agenda lotada, pela consciência crescente de que somos tão vulneráveis quanto nossos pacientes e de que é impossível advogar causas alheias se não cuidarmos das próprias.
Mesclar atividades de atendimento ao cliente com atividades didáticas como dar aulas, palestras ou trabalho institucional é um outro recurso desejável. Faz o terapeuta se locomover, conversar com outras pessoas, entrar em relações mais simétricas do que aquelas que estabelece com os pacientes.
Grupos de terapia e supervisão são também muito importantes, desde que representem um lugar seguro aonde o profissional pode se expor sem temer retaliações e críticas pessoais. Um bom grupo de supervisão não excede a meu ver, 6 ou 7 colegas e implica num trabalho íntimo de construção do papel profissional. Grupos muito grandes facilitam idealizações e defesas que acabam por destruir a genuinidade das informações.
Uma outra forma de suporte grupal que diminui o isolamento profissional é organizar pequenos grupos de estudo sobre um tema escolhido conjuntamente. Estes “grupos de iguais” além de serem produtivos no sentido de reciclar os profissionais e produzir trabalhos escritos, tem a vantagem de propiciar uma relação simétrica menos formal que a supervisão . Quase que naturalmente os colegas compartilham suas dificuldades na clínica e oferecem continência emocional para questões delicadas como: falta de clientes, sessões que pareceram mal conduzidas, “amores e ódios do terapeuta para os clientes”, dicas para um atendimento que nos preocupa, etc. Pessoalmente, sou fortemente favorável a este recurso.
Participar de congressos, vivências e pesquisas dentro da área de trabalho também ajudam o terapeuta a manter um interesse saudável em sua prática pessoal.
Acho extremamente importante reconhecermos estas questões ligadas ao nosso desempenho profissional e gostaria de vê-las debatidas com mais freqüência em nossos congressos. Acredito que exista muita vergonha associada a esta discussão, uma vez que parecemos meio semideuses uns aos outros, e admitir nossas necessidades pode bem ser confundido com ter algum tipo de falha ou defeito pessoal.
O mito grego do deus da saúde e pai da medicina Asklepios20 , me ajuda a encerrar este texto:
” Asklepios , filho do Deus Apolo com a mortal Koronis, foi ferido antes de nascer; seu pai Apolo, numa crise de ciúmes após saber que Koronis o traíra, mandou queimá-la viva. Ao saber entretanto que estava grávida, arrancou o bebe de seu ventre e o entregou a Chiron, o centauro, para educá-lo e treiná-lo na arte da cura.
Chiron por seu lado era meio humano e meio divino e sofria de uma ferida incurável que lhe foi conferida por Hércules. Assim, Chiron, o curandeiro que necessitava curar a si mesmo, passou a Asklepios a arte de curar, a capacidade de encontrar sementes de luz e de se sentir à vontade na escuridão do sofrimento
O paradoxo das profissões de ajuda ao outro é que o curandeiro cura mas ao mesmo tempo permanece ferido. Não existe ser humano sem feridas e nossas psicoterapias, por melhor excelência que tenham, não nos excluem de nossa própria humanidade.”
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
• Allen, (1979) Hidden stresses in success. Psychiatry ,42,171-175.
• Berkowitz (1987) Therapist survival: maximizing generativity and minimizing burnout. Psychotherapy in Private practice 5 (1) , 85-89.
• Dias, Victor R.C.S (1987) – Psicodrama- Teoria e Prática- Edtora Ágora -S.Paulo.
• Duton,M.A. and Rubinstein, F.(1985) – Working with People with PTSD: research implications in Figley, R.C.( 1995) – Compassion Fatigue, Brunner/Mazsel, Inc, New York, U.S.A.
• Figley, R.C.( 1995) – Compassion Fatigue, Brunner/Mazsel, Inc, New York, U.S.A
• Freud ,S. (1910) – El Porvenir de la Terapia Psicoanalitica- in Obras Completas , Biblioteca Nueva, 1973 ,Madrid.
• Freudenberguer, H. (1980)- Burnout: the high cost of high achievement, Doubleday Publisher, New York.
• Grosch, N. W. and Olsen, C. D. (1994) – When Helping Starts to Hurt , W. W .Norton & Company, New York, U.S.A.
• Kahill,S. (1988)- Interventions for Burnout in the helping professions : A review of empirical evidence. Canadian Journal for Counseling Review,22 (3), 310-342
• Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais (1989) 3ª Edição -Revista DSMIII -R, Editora Manole Ltda .
• Miller, A. (1997)- O Drama da Criança Bem Dotada , Editorial Summus, S.Paulo.
• Pines, Ayala (1993)- Burnout: Handbook of Stress. free press.. Psychotherapy in Private practice 5 (1) , 85-89 ,New York .
• Stanton.J. A. (1999)- Aesculapuius: A Modern Tale- MSJAMA online: http://www.ama-assn.org/sci-pubs/msjama/articles/vol_281/no_5/jms90003.htm
6Freud ,S (1910) – El Porvenir de la Terapia Psicoanalitica”
7Figley,R.C.(1995) – Compassion Fatigue
8Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais , 3ª Edição -Revista DSMIII -R, Editora Manole Ltda 1989 pp . 264- 267
9Pines, Ayala- Burnout-Handbook Of Stress
10Kahill, S. (1988)- Interventions for Burnout in the helping professions : A review of empirical evidence. Canadian Journal for Counseling Review, 22 (3)3310-342
11Duton,M.A. and Rubinstein, F.- Working with People with PTSD: research implications
12Miller, A. (1997)- O Drama da Criança bem dotada
13Freudenberguer,H. (1980)- Burnout: the high cost of high achievement.
14Allen,1979. Hidden stresses in success. Psychiatry ,42,171-175.
15Dias,Victor, R.C.S. ( 1987) Psicodrama-Teoria ePrática.
16Causalidade circular: todos no sistema estão relacionados, portanto qualquer mudança afeta todos os indivíduos e o sistema como um todo.
17Mahoney, Michael – Comunicação pessoal em workshop sobre a “”Vida Pessoal dos Psicoterapeutas”. É médico, PHD –pela universidade de Stanford e autor de vários livros dentro da abordagem Cognitiva e constructivista.
18Berkowitz(1987)-Therapist survival: maximizing generativity and minimizing burnout. Psychotherapy in Private practice %(1) , 85-89.
19William Grouch e David Olsen (1994)- When Helping starts to hurt,W W Norton & Co Inc,1994, New York.
20Stanton, J.ª ( 1999) – Aesculapius: A modern Tale
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Uma colega do meu grupo de estudos de Moreno, o GEM, disse uma coisa muita engraçada outro dia , sobre mesas redondas em congressos. Ela disse que não importa qual seja o tema da mesa , os debatedores sempre expõem o que bem entendem , ou seja, que aproveitam a oportunidade para passar ao público a mensagem que lhes interessa e, não necessariamente aquela proposta pelos organizadores.Eu costumo fazer a lição direito, mas quando pensei no tema desta mesa, ” Fundamentos do Psicodrama” logo me ocorreram duas possibilidade de abordagem: na primeira eu entenderia a palavra Fundamento como alicerce, base sólida que legitima e autoriza a prática psicodramática; já na segunda eu buscaria o que me parece fundamental , essencial, indispensável ao Psicodrama. Confesso que fiquei mais seduzida pela segunda possibilidade, até porque o Psicodrama para Moreno (1999:33) é apenas um dos métodos da sociatria, no tripé que compõe a socionomia: sociodinâmica, sociometria e sociatria.( ver fig. 1)
FIG. 1 SOCIONOMIA
Buscar os fundamentos do Psicodrama corresponderia a fundamentar toda a socionomia, ou seja descrever os fundamentos de toda a obra de Moreno. Eu teria que mencionar no mínimo: a visão moreniana de homem espontâneo, sua filosofia do momento, bem como a Teoria dos Papéis e a Teoria da Ação e, sinceramente não conseguiria fazer isto em 15 minutos.
Por isso optei pela segunda possibilidade ou seja interpretar a palavra fundamento como aquilo que considero o atributo básico, essencial e indispensável ao Psicodrama .
Moreno define o Psicodrama de muitas formas. Numa delas diz: é o tratamento do indivíduo ou do grupo através da ação dramática (1992:183).
Pessoalmente considero a ação dramática uma das características fundamentais do Psicodrama e, especialmente em relação ao enquadre bipessoal, acho preocupante sua ausência. Tenho ouvido muitos colegas, professores-supervisores , dizerem que não gostam e não dramatizam na ausência de um ego –auxiliar ou munidos de objetos e almofadas. Não estou, preciso salientar, duvidando da eficácia ou não de um psicodrama sem drama, pois sei que o sucesso de um tratamento reside numa série de fatores e não apenas em um.
O que me surpreende é perceber como alguns colegas descartam um instrumental técnico tão fantástico como a dramatização, cujo valor terapêutico está sendo cada vez mais comprovado experimentalmente. Quero, portanto comentar, nos próximos 15 minutos, três aspectos terapêuticos da ação dramática que me parecem fundamentais:
1- Favorece uma descarga energética muscular, necessária para pacientes traumatizados por abusos infantis variados ou com sequelas de traumas por acidentes (Desordens do Estresse Pós-traumático)Os estudos sobre trauma e suas conseqüências duradouras na vida das pessoas tem provado cada vez mais, que Moreno (1959, p.239) tinha razão ao afirmar que “a fome de atos” é uma necessidade fisiológica do ser humano, tal qual, comer, beber, respirar. *
A resposta imediata a uma situação estressante ** dispara mecanismos de reação do sistema nervoso simpático, conhecida como “reação de alerta”. O organismo animal se prepara para lutar ou fugir, a respiração se torna mais profunda, o sangue é levado do estomago e dos intestinos para o coração , para os músculos, os processos em curso no canal alimentar cessam, o açúcar é liberado das reservas do fígado, o baço se contrai e descarrega seu conteúdo, a hipófise estimula as supra renais e o organismo é inundado por hormônios tais como a adrenalina. É uma preparação eficaz para a atividade e para o combate, como Walter Cannon já descrevia em 1939 e Paul MacLean reafirmou em 1952.
Estudos advindos do reino animal (Levine,1999) nos mostram que quando um animal é impedido de reagir , entram em funcionamento mecanismos arcaicos cerebrais, o cérebro reptiliano, provocando uma resposta de congelamento das funções vitais, simulando uma morte em vida. Este artifício permite que o animal fingindo-se de morto, consiga às vezes ser abandonado pelo predador, ou, no mínimo, um certo tempo, para bolar outra estratégia de fuga.
O mesmo ocorre, com algumas diferenças, no animal humano. O neurologista americano Paul MacLean descreveu em 1952 a natureza tripartida do cérebro humano,resultado de nossa evolução filogenética (ver fig. 2)
FIG.2 PAUL MACLEAN “O CÉREBRO VISCERAL” (1952}
A haste do cérebro é o cérebro primitivo, reptiliano. É um remanescente de nosso passado pré-histórico, útil para decisões rápidas, que não exigem pensamento. O cérebro reptiliano focaliza-se na sobrevivência e é orientado pelo medo, entrando em ação sempre que estamos em perigo e não temos tempo para pensar. Num mundo em que sobrevivem os mais capazes, o cérebro reptiliano preocupa-se com a obtenção do alimento e em não se tornar alimento.
A camada central do cérebro é a parte límbica ou cérebro mamífero, raiz das emoções, do humor e sentimentos. Já o neo-cortex é a parte do cérebro mais evoluída e adiantada. Ela governa nossa habilidade de falar, pensar, e resolver problemas. O neocortex afeta a criatividade e a capacidade de aprender e abrange aproximadamente 80 por cento do cérebro.
Como podemos ver, o cérebro humano é mais especializado, entretanto, como Le Doux e Van Der Kolk (1996) demonstraram, em situações traumáticas ele funciona de forma incompleta, pois o . o néo-cortex sofre alterações funcionais liberando hormônios que o tornam entorpecido. ( ver fig. 3). As memórias que são arquivadas neste momento carecem de verbalização, são formadas por sensações, imagens visuais e padrões motores, pois a linguagem é função neo cortical.
FIG 3- FUNCIONAMENTO CEREBRAL E MEMÓRIA NO ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
Igualmente ao animal, o homem funciona com o cérebro reptiliano quando é impedido de reagir. O congelamento de funções vitais se manifesta através de uma respiração superficial e músculos endurecidos, simulando o “rigor mortis”, e uma mente anestesiada, como se a pessoa fosse um zumbi. Só que , ao contrário do animal que passado o perigo descongela através de um tremor corporal observável, o ser humano intermedeia estas funções físicas, com pensamentos, sentimentos, emoções, lealdades invisíveis, etc. -produtos das duas outras camadas cerebrais que possui.
Muitas vezes uma pessoa que foi estuprada, por exemplo, tem que disfarçar seu horror, conter seu choro, seu tremor, sua vergonha, mostrar para o mundo que nada aconteceu. Como resultado desta não-ação, seu corpo não se recupera do trauma e da impotência sentidos na hora do ataque. Fica faltando uma ação de combate, de retomada do controle, que muitas vezes só é conseguida muitos anos depois, através da repetição ativa da violência ou abuso, desta feita no papel de abusador, ou daquele que tem o controle. (muitas adições são tentativas desastradas de simular controle).
A dramatização fornece a oportunidade desta ação faltante, permitindo aos músculos uma descarga segura desta necessidade corporal de retomada de controle. Lembro vocês que o psicodrama foi uma das primeiras terapias corporais e Morenos já dizia que o corpo se lembra daquilo que a mente esquece, sobretudo fatos que se passam nos primórdios da vida infantil, antes até do surgimento da linguagem. A melhor forma de recapturar memória de ações é através de métodos expressivos, que usam a pessoa inteira (corpo e mente) na ação.
2- Favorecer a pesquisa ativa e responsável do paciente em relação à sua problemática
Como eu expliquei acima, o impedimento de uma reação de combate gera uma postura letárgica e impotente diante da realidade. Desnecessário eu lhes dizer que a maior parte dos nossos pacientes se sente assim em relação à própria vida. Parece que algo deve mudar mas eles não se sentem capazes de empreender esta mudança.
Em muitas terapias verbais, quando, sobretudo a interpretação é utilizada, a chave do quebra cabeça simbólico, do que significam aqueles sentimentos pensamentos, de como eles se relacionam com o passado, presente, futuro, parece estar nas mãos do terapeuta. O paciente é paciente – espera que o terapeuta faça o seu trabalho. Isto apenas reforça sua já aprendida fragilidade e impotência.
Bustos têm um quadrinho no seu consultório, com a seguinte frase: ” o que foi dito de mim que não fui eu que descobri não me serve” ; Milton Erickson (1983, pp. 45), grande psicoterapeuta americano, criador da hipnoterapia moderna e inspirador das terapias sistêmica, estratégica, familiar, etc. – também achava que a interpretação direta do terapeuta representa um estupro para o inconsciente do paciente, que manda um batalhão de defesas para dissociar, negar,ou seja, se defender do jeito que puder. No inconsciente do paciente penetramos indiretamente, pela porta de trás, com muito aquecimento, e nunca antes dele mesmo.
Além disso, todos os pacientes têm uma parte saudável e combativa e eu, particularmente, faço meus pacientes saberem disto desde o início de nossos encontros. Sempre lhes pergunto o que querem trabalhar naquela sessão específica e os coloco para atuar as situações que escolhem trabalhar. Eles são pesquisadores ativos, como eu. Decifrar seu material, suas emoções, decisões, etc. é nossa tarefa conjunta e freqüentemente mais tarefa deles do que minha.
3- Oferece o elemento surpresa para um paciente acostumado a funcionar apenas com conservas defensivas.
A dramatização não tem script pré-determinado. Eu nunca sei o que vai aparecer , muito menos o meu cliente. Freqüentemente fico surpresa com o que surge e adoro ver a cara de surpresa nos meus pacientes. Eu também os surpreendo jogando papéis e contra-papéis de forma inesperada, buscando uma interpolação de resistências muito útil para estimular respostas espontâneo-criativas, ou seja, novas respostas a velhas situações.
Moreno (1923, p. 54) já nos falava sobre o papel representado pela surpresa na ativação dos processos espontâneo-criativos. Já Milton Erickson (1983, p. 50) utilizava a confusão como uma técnica de indução para hipnose . Ele pedia, por exemplo, que uma pessoa se visualizasse subindo num avião para os EUA e, no final da viagem, após várias consignas pedia para a pessoa se ver descendo na Índia. Ele sabia que o fator surpresa desestabiliza as defesas intrapsíquicas, obrigando a mente a produzir uma energia responsiva diferente.
Nas situações traumáticas infantis ou mesmo nos situações traumáticas acidentais, o elemento surpresa também está presente, forçando o paciente a erigir uma defesa que lhe restaure alguma sensação de controle. A cura favorecida pela dramatização de alguma forma se conduz pelo princípio homeopático de prescrever o mesmo fator responsável pela doença, desta feita com o objetivo de saná-la.
Não posso imaginar nada mais anti-moreniano, do que um terapeuta que ouça e interprete verbalmente seu paciente. No mínimo, seria preciso provocar uma ação interna , dentro do paciente, nos moldes de um psicodrama interno ou da terapia da relação do Fonseca, fazendo trocas de papéis sentados ou simbolicamente, favorecendo seu espanto e a surpresa, ainda que sem o benefício das associações musculares que a movimentação corporal fornece.
Para finalizar, quero lhes dizer que acredito que a ausência da dramatização em muitos psicodramas se deva mais ao desconhecimento de como e para quê se dramatiza, do que da dificuldade de fazê-lo sem egos auxiliares, ou sem grupo.Supervisionando meus alunos cheguei à seguinte lista das dúvidas mais freqüentes em relação à dramatização:
1- Como trabalhar questões pertinentes à relação terapêutica: contrato (hora, local preço, reposições); pacientes que não querem dramatizar etc.
2- Qual o objetivo da dramatização? O objetivo é exploratório (tipo um átomo social) , é experimental (treino de papéis), ou visa reparar danos narcísicos ? (dramatização de cenas infantis)
3- Como escolher uma cena para dramatizar? Quando o paciente fala muito, como se escolhe uma cena? É o terapeuta ou o paciente que escolhe a cena?
4- Como articular o tempo na dramatização, ou seja, presente, passado e futuro? Como ir da queixa atual do paciente para o passado ( cena regressiva), ou para o futuro ( cenas temidas,
desejadas) e depois voltar para o aqui e agora da relação com o terapeuta?
5- Como aquecer o paciente e manter este aquecimento durante toda a dramatização?
6- Como decidir qual técnica, dentre as técnicas clássicas, utilizar?
7- É melhor um psicodrama com cena aberta ou um psicodrama interno?
8- Como não se perder no meio da dramatização?
9- Como fazer quando o tempo da sessão termina no meio de uma dramatização?
10- Como finalizar uma dramatização?
Como vocês podem concluir, a minha colega, aquela que disse que não importa qual seja o tema da mesa, o debatedor sempre fala aquilo que lhe interessa, tinha razão. Eu realmente acredito que a dramatização é uma das ferramentas mais importantes do psicodrama e acho que alunos melhor preparados em relação a estes tópicos, tenham menos medo de dramatizar e possam perceber as vantagens da utilização de técnicas de ação para ajudar seus pacientes.
Muito obrigada
Rosa Cukier
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
• Cukier, Rosa (1992) – Psicodrama Bipessoal, sua técnica, seu paciente e seu terapeuta, Editora Àgora, S.Paulo.
• Cannon Walter (1939) – The Wisdom of the Body, Nova York, Norton, Citado por Anne Ancelin Schutzenberger – ” Querer Sarar”, Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1995.
• Lê Doux, Joseph.(1996) -O Cérebro Emocional, Editora Objetiva, Rio de Janeiro
• Levine P. A. (1999) – O Despertar do Tigre, Curando o Trauma – Editora Summus, S.Paulo.
• Moreno, J. L (1923). – O Teatro da Espontaneidade. São Paulo:Summus Editorial, Ltda, 1973
• Moreno, J. L. (1959) – Psicoterapia de Grupo e Psicodrama, Editora- Livro Pleno Ltda. , Campinas,1999.
• Van der Kolk, B. Mc. Farlane A. Weisaeth L. (eds.) ). Traumatic Stress: the effects of overwhelming experience on mind body and society. New York, Guilford Press. 1996.
• Zeig, K. J. ( 1983)- Os seminários Didáticos de Psicanálise de Milton H. Erickson, Editora Imago, Rio de janeiro.
¹ Trabalho apresentado no IV Congreso Iberoamericano De Psicodrama-2003.
* Moreno afirmava : Fome de expressão é, primeiro, fome de atos, muito tempo antes de se transformar em fome de palavras.
** Situação estressante significa qualquer situação que leva o indivíduo a um estado de desespero, seja por estar lutando para preservar sua vida ou a vida de outrem significativo.
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Alguém já disse, brincando, que a diferença entre o homem e os animais não reside tanto no fato dele ser racional mas sim, no fato do homem ter parentes. Talvez por nascer semi-pronto e ter uma longa infância sob os cuidados de alguém que o ajuda a sobreviver, o homem é o animal que se envolve mais longa e profundamente com seus antecessores e sucessores. Pai, mãe, irmãos e irmãs, avós, sogros, tios e primos……. heis a nossa grande peculiaridade e também a fonte dos nossos maiores problemas! Este o caso da codependência, um tipo de patologia emocional e vincular, descrita por estudiosos do comportamento humano nos EUA. Os primeiros estudos datam de 1983, e apesar dela ainda não constituir um quadro nosográfico no DSM-IV, existem vários1 livros escritos com este título, inclusive um, já traduzido para o português2. Primeiramente a descrição deste quadro incluía apenas famílias de pacientes alcoólicos mas, com o tempo seu significado foi estendido e atualmente o termo codependência também se refere à conduta de familiares e parentes de pessoas que tem algum problema grave e crônico, físico ou emocional.“Uma pessoa codependente e aquela que deixa o comportamento de outra pessoa controlar o seu e que fica, por seu turno obcecada em controlar o comportamento desta outra pessoa.”
Tudo começa com o fato de nos encontrarmos ligados (por amor, obrigação ou dever) a alguém muito complicado, doente física ou emocionalmente, que por conta desta doença se auto-destrói ou desiste de viver e precisa, aparentemente, de nosso apoio e cuidado constante. Esta pessoa pode ser uma criança que nasceu com um defeito físico, um adulto deprimido, uma esposa ou amante anoréxica, um irmão que não se saiu bem na vida, uma irmã que sempre se mete em encrencas e parece frágil para resolvê-las, um pai alcoólatra. Enfim, o importante não é quem esta outra pessoa é, ou qual doença ela tem. O núcleo da questão está em nós mesmos, na forma como deixamos que ela afete nosso comportamento e nas formas como tentamos influir no comportamento dela ou “ajudá-la”. Estou falando, de uma reação à autodestruição do outro que acaba nos destruindo. Tornamo-nos vítimas da doença alheia e, quanto mais nos esforçamos para fazer esta pessoa abandonar o vício ou mudar de postura diante da vida, menos ela melhora e mais arrasados ficamos. Parece que nossa vida gira em torno dela, não mais agimos por vontade própria mas sim reagimos à forma como o(a) doente está: se está bem ficamos bem, fazemos planos, temos esperança; na hora em que ele(a) volta a beber ou deprimir, suspendamos o cinema, os projetos, nos sentimos uma porcaria. Sei que muitos de vocês já entenderam do que estou falando porque provavelmente vivem ou atendem pessoas que experienciam situações semelhantes. Talvez o que vocês não saibam é que alguns cientistas consideram este comportamento de ajuda crônica ao outro, em si mesmo, uma doença emocional, grave e progressiva. Dizem até que o codependente quer e procura pessoas complicadas para se ligar, só podendo ser feliz desta forma. Eu não penso exatamente assim, pois muitos codependentes que atendi eram pessoas cansadas de sofrer e que queriam sinceramente mudar, mas seja por educação, religião, culpas variadas e… cada caso um caso -, não conseguiam se desligar. Algumas características comuns aos codependentes me chamam muito a atenção: são em geral pessoas de natureza benevolente, vieram de famílias emocionalmente perturbadas e desde a infância quiseram consertar as coisas que estavam erradas; tem uma tendência a se responsabilizar e culpar por tudo; são muito dependentes do amor, do elogio, da avaliação do outro; acham que sabem melhor e que agüentam mais do que os outros determinadas situações; mentem para si mesmos dizendo que “as coisas estarão melhores amanhã”; ” esta foi a última vez “…; tem dúvidas se serão felizes no futuro ou se algum dia encontrarão o verdadeiro amor; sentem dificuldades de estar perto de pessoas, se divertir e ser espontâneo; alternam um cuidado super-carinhoso para com a pessoa doente e formas agressivas e grosseiras de lidar com ela; vão se sentindo com o passar dos anos cada vez mais infelizes, deprimidos, isolados, violentos; tem desordens de alimentação (ou comem muito ou pouco); acabam tendo algum tipo de adição: cigarro, álcool, calmantes, etc. Esta doença de forma genérica está associada à várias formas de abuso infantil e os codependentes têm dificuldades basicamente em cinco áreas:
- 1- Baixa auto-estima;
- 2- Dificuldade de colocação de limites;
- 3- Dificuldades em reconhecer e assumir sua própria realidade;
- 4- Dificuldades de tomar conta de suas necessidades adultas;
- 5- Dificuldade de expressar suas emoções de forma moderada.
Será que a codependência tem cura? Não há uma resposta simples a esta questão. Nos EUA formaram-se grupos de auto-ajuda, como por exemplo os grupos para famílias de alcoólicos anônimos, onde se procura discutir e dar apoio aos codependentes.Minha própria experiência mostra que a psicoterapia, especialmente o psicodrama por ser uma abordagem que privilegia o estudo dos vínculos, costuma ser muito útil nos casos onde o codependente se encontra desiludido da própria potência para mudar a vida do outro e começa, realmente, a querer mudar a própria vida. O tratamento auxilia e encoraja o paciente a empreender as mudanças necessárias, a se confrontar com seu passado abusivo e se reposicionar diante do parente doente, afim de retomar uma forma mais saudável de viver, ainda que o parente continue querendo morrer.
BIBLIOGRAFIA· Beattie, Mellody (1994) – Codependência nunca mais! – Editora Best Sellers, São Paulo.
· Cukier.Rosa (1998)- Sobrevivência Emocional: as feridas da infância revividas no drama adulto, Editora Ágora, S.Paulo.
· Cermak, T.L (1986). – Diagnostic criteria for Codependency – Journal Of Psychoatctive Drugs. 18(1):15-20 citado por Mellody, Pia.- Facing Codependence, Harper & Row, Publishers, San Francisco,1989.
· Mellody, Pia (1989)- Facing Codependence, Harper & Row, Publishers, San Francisco,
1 Cermak,T.L. (1986)
2 Beattie,Mellody (1994)
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Alguns terapeutas provavelmente já tiveram a experiência de atender um paciente que fica furioso na sessão reclamando da sua habilidade como terapeuta, de algo que você tenha dito ou, ainda, da forma como o fez. Em geral, nós, terapeutas, ficamos muito desconfirmados nestes momentos, meio sem saber como atuar, em parte procurando descobrir o que fizemos de errado, em parte tendo certeza de que aquela é mais uma atuação do paciente, o que nos provoca raiva e, às vezes, medo dele. Estes são exatamente os sentimentos que o paciente borderline produz nos que lhe são mais íntimos e caros: portanto é essencial que o terapeuta saiba disso, decodifique as próprias emoções sem culpa ou vergonha, afim de não atuar complementarmente e ser capaz de auxiliar o paciente a compreender a psicodinâmica envolvida no processo.
Os estudos estatísticos americanos estimam serem borderlines 11% dos pacientes psiquiátricos não internados e 19% dos internados. Dentre os casos diagnosticados como “desordens de personalidade” calcula-se que 33% dos não internados e 63% dos internados sejam borderlines. Este tipo de paciente é, portanto, bastante freqüente a ponto de se acreditar que cada terapeuta, de forma geral, tenha atendido pelo menos um caso. Além disso são também aqueles que mais se suicidam. Estima-se que 70 a 75% tem pelo menos um episódio ou ato auto-destrutivo e os índices de suicídio fatal estão em torno de 9%.
O intrigante, além da alta periculosidade deste quadro, é que as terapias disponíveis falham sem exceção e os progressos terapêuticos são insignificantes e lentos. Os pacientes costumam chegar às clínicas com uma lista de terapeutas já consultados, multi-medicados ( os médicos tentam várias medicações psiquiátricas para conter os sintomas) e suas famílias parecem desoladas e sem esperança de obter real auxílio.
II- O CONCEITO DE PERSONALIDADE BORDERLINE (5)
O termo “borderline”, traduzido para o português como “fronteiriço” ou “limítrofe”, foi usado pela primeira vez em 1938 por Adolf Stern, referindo-se a pacientes que não se beneficiavam da psicanálise clássica, nem se encaixavam nas categorias “neuróticos” ou “psicóticos”. Ele os classificou como possuindo um tipo de neurose borderline. Em 1980 o quadro foi incluído no Manual Estatístico e Diagnóstico- III da Associação Americana de Psiquiatria6 que listou oito critérios (nove na revisão seguinte), cinco dos quais devem estar presentes para se fazer o diagnóstico de distúrbio borderline:
1- Padrão de relacionamentos interpessoais instável e intenso (alterna idealização e desvalorização). Pensa dicotomicamente e de forma radical. Não compreende o meio termo, as inconsistências e ambigüidades. Idealiza e se desaponta o tempo todo.
2- Impulsividade em pelo menos duas áreas potencialmente prejudiciais à si próprio (sexo, droga, roubos, direção imprudente, desperdício, voracidade). Comportamentos resultam de sentimentos momentâneos intensos. Não é capaz de protelar a gratificação, pois a noção de tempo está prejudicada: só o ” hoje” parece existir.
3- Instabilidade afetiva devido a acentuada reatividade do humor (episódios de intensa disforia, irritabilidade ou ansiedade, que habitualmente duram algumas horas e, só raramente, alguns dias). As reações são intensas e desproporcionais ao fato que as gerou.
4- Raiva intensa e inadequada ou dificuldade em controlar a raiva (demonstrações freqüentes de irritação, raiva constante, lutas corporais recorrentes): São típicas cenas domésticas do tipo gritar, quebrar objetos, ameaçar com facas, bater/arranhar pessoas. A raiva aparece após qualquer ofensa trivial, mas parece advir de algum arsenal subterrâneo, do medo de ser abandonado ou desapontado. Assemelha-se a um grito de socorro incompetente, pois acaba afastando as pessoas de quem precisa mais.
5- Ameaças, gestos ou comportamento suicida recorrente e auto-mutilante: A auto-mutilação, excetuando-se quando está associada à psicose, é uma espécie de marca registrada desse distúrbio.
O paciente pode cortar-se, fumar ou comer em demasia, descuidar-se do corpo de forma ostensiva, guiar displicentemente. É um comportamento que tem duplo significado: testemunha depressão e desespero subjacentes (sentir dor física é, em casos extremos, a única forma de sentir-se vivo e/ou uma forma eficiente de distrair-se de um sofrimento maior); mostra a necessidade de manipular pessoas para conseguir atenção ou carinho. Este sintoma traz aos terapeutas os maiores problemas: se dispensam muita atenção correm o risco de reforçar as condutas; se as ignoram, o paciente pode ir num crescimento de tentativas para os impactar e culminar num suicídio fatal.
6- Perturbação da identidade; instabilidade acentuada e resistente da auto-imagem ou do sentimento de self : Carece de percepção de limites entre si e os outros; precisa impressioná-los para mantê-los perto e seu senso de identidade e auto-estima está associado a conseguir ou não esta atenção. Tem que estar o tempo todo provando isto e, no fundo, guarda um sentimento de inautenticidade, de falsidade. Mesmo obtendo sucesso, fica chateado, sentindo que não mereceu, que vão descobrir que ele é uma fraude e humilhá-lo.
7- Sentimento crônico de vazio ou enfado: A ausência de forte senso de identidade culmina num sentimento de vazio existencial. Este sentimento é tão doloroso a ponto de provocar comportamentos impulsivos e auto-destrutivos na tentativa de livrar-se desta sensação.
8- Esforços frenéticos para evitar abandono real ou imaginado: Tal qual a criança que não distingue entre a ausência eventual da mãe e sua morte ou desaparecimento, experimenta qualquer solidão eventual como isolamento completo e eterno. Não suporta a solidão e fica seriamente deprimido com o abandono real ou imaginado, pois perde a sensação de existir. Seu lema existencial parece ser: “se os outros inter-atuam comigo, então eu existo!”
9- Ideação paranoide transitória relacionada a situações estressantes ou severos sintomas dissociativos8. Em situações de muita tensão, pode apresentar dissociações passageiras, pensamento confuso e delirante, com interpretação paranoide dos fatos.
III- DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
O diagnóstico diferencial entre os vários distúrbios de personalidade não é tarefa fácil, sendo comum quadros mistos, com sintomatologia semelhante. Na realidade o distúrbio borderline é compatível com várias outras patologias, ficando difícil saber o que veio antes. Por exemplo, se o distúrbio de personalidade veio antes de uma depressão ou de um alcoolismo, ou se foi secundário a estas ocorrências.
Muitas vezes os pacientes borderlines apresentam uma ideação paranoide e cindida, só se diferenciando dos esquizofrênicos paranoides porque as crises são mais rápidas e não deixam sequelas agudas como na esquizofrenia. Além disso o esquizofrênico acaba se acostumando com seus delírios e perseguições, ficando menos perturbado por elas do que o borderline.
Em relação às doenças afetivas, principalmente as bipolares, existem semelhanças relativas às mudanças súbitas de humor mas, no borderline estas mudanças são mais rápidas e, mesmo nos intervalos entre crises, tem dificuldade de adaptação à realidade. Também é possível confundir um borderline com um hipocondríaco crônico, na medida em que mantêm queixas físicas intensas para conseguir vínculos de dependência com os familiares e/ou médicos .Muitos autores acreditam ainda, que exista uma grande prevalência de distúrbios borderlines entre pacientes com diagnóstico de personalidades múltiplas , ou estresse pós-traumático. Herman, J. (1992:123-129) estuda sobreviventes de vários tipos de trauma (tais como, abusos infantis variados , estupro, guerras, etc.) propondo o nome genérico de “Síndrome Complexa do Estresse Pós Traumático” para incluir todos estes quadros. Argumenta apropriadamente, que o diagnóstico de “ personalidade borderline” tem causado mais prejuízo do que benefício para o estudo dos distúrbios de personalidade, pois tal como o termo “ histérico”, cuja conotação negativa e pejorativa acabou se tornando um jargão na psiquiatria a palavra “borderline” passou a significar, nos últimos anos, manipulador e criador de casos. Isto impossibilita que os pacientes sejam encarados como sobreviventes heróicos de severos traumas infantis, com todo o respeito que este fato demanda. Esta autora mostra também que o psiquismo tem e usa alguns recursos defensivos contra situações limites que atentam contra a dignidade humana. Dissociação, intrusão, irritabilidade, auto-hipnose, impulsividade, mudanças de humor intensas, auto-mutilação, etc. são algumas destas ferramentas de defesa que mais tarde constituem os diversos quadros de transtornos de personalidade.
Outra disfunção que freqüentemente é associada à personalidade borderline pertence aos distúrbios narcísicos de personalidade, sobretudo pela presença de uma hipersensibilidade ás críticas, e ao fato de que qualquer falha pode levar a depressão grave. A grande diferença aqui é que, a longo prazo, o narcisista acaba sendo , em geral, bem sucedido profissionalmente pois trabalha muito para construir e manter sua imagem pública poderosa, sendo profundamente auto – centrado e não se apegando aos demais. Já o borderline não tem constância e disciplina, destrói vínculos afetivos e profissionais , além disso é viscoso , insistente e muito vulnerável à opinião alheia.
Quanto à semelhança diagnóstica com os pacientes categorizados como para – suicidas nos manuais de diagnóstico AXIS e DSM, existem, realmente, sintomas comuns a ambos os quadros tais como: acentuado descontrole emocional, irritabilidade e hostilidade, problemas interpessoais graves, padrões de descontrole comportamental, abuso de drogas, promiscuidade sexual, tentativas para – suicidas prévias. As dificuldades cognitivas também são semelhantes: marcada rigidez cognitiva, pensamento dicotômico, pequena capacidade de abstração e de resolução de problemas. Estas dificuldades cognitivas são relacionadas a déficit de memória episódica. Os indivíduos afirmam que seu comportamento é para escapar de uma vida intolerável.
Parece certo que o comportamento que mais diferencia o borderline dos outros quadros de distúrbios de personalidade é a presença de atos auto-destrutivos e tentativas de suicídio. Cerca de 70 a 75% dos pacientes borderlines tem pelo menos um episódio ou ato auto-destrutivo de intensidade variável ao longo da vida e o suicídio fatal ocorre em 9% dos casos ( Lineham, M.1993: 3) Dentre aqueles que apresentam os 8 critérios do DSM-IIIR , 36% se matam, comparados a 7% dos que apresentam 5 a 7 dos critérios.
IV – ETIOLOGIA
Três tipos de causas são aventadas na busca de explicara etiologia:
a- Desenvolvimento emocional
A história clínica desses pacientes freqüentemente mostra que eles vêm de famílias conflituosas, com alta porcentagem de brigas e separações. Em geral foram crianças que sofreram abusos variados na infância (físico, sexual ou emocional). Os comportamentos auto-destrutivos seriam formas inconscientes de perpetuar estes abusos.
A idade de 18 a 30 meses ( logo após a aquisição da locomoção) é mencionada na literatura 10, 11, como muito importante na etiologia deste quadro. Os pais neste período oscilam entre controlar a criança para que ela não se machuque ou tornar-se meio ausentes, precocemente liberados de cuidar de uma criança que já prefere explorar o mundo a ficar passivamente no colo. Muitos pais não suportam a autonomia da criança, ficam ressentidos e ameaçam-na com abandono. O distúrbio borderline seria também, a conseqüência de uma educação demasiadamente autoritária, onde pais rígidos sempre imporiam seus desejos. Com o tempo, as tentativas de auto afirmação sucumbem aos desejos dos pais e a criança se habitua a submeter-se sempre, desenvolvendo dúvidas sobre a própria capacidade e vergonha pelos seus fracassos. Aos poucos vai parando de tentar expressar suas vontades.
b- Fatores Constitucionais:
Os achados da literatura são apenas sugestivos da presença de fatores constitucionais ou hereditários na etiologia deste quadro. Sabe-se que irmãos criados na mesma família reagem aos conflitos de forma diferente, mostrando que é preciso alguma especificidade para estruturar um tipo de doença e não outro. Entretanto, o indivíduo que vai desenvolver posteriormente o quadro de distúrbio borderline é, uma criança hipersensível, que solicita exageradamente o ambiente; é mais vulnerável, suas necessidades já se apresentam muito intensas, seu limiar à frustração é menor, as reações mais exageradas. É relevante a presença de pais borderlines (um ou ambos) na história clínica, sendo ainda impossível determinar se isto significa herança biológica ou psicológica.
c- Fatores Socioculturais:
Alguns autores apontam, com razão, que existem condicionantes socioculturais para a alta incidência de distúrbios narcísicos e borderlines nos tempos atuais, destacando em sua análise a falta de uma estrutura familiar nuclear composta de pai e mãe que ficam parte do tempo cuidando de suas crianças. A mudança no papel feminino nos últimos 30 anos culminou com uma mudança radical na rotina doméstica; o tradicional “papai trabalha e mamãe cuida das crianças” não existe mais: “mamãe” também trabalha fora. As crianças vão à escola cedo ou ficam sob cuidados de outrem, os velhos são tratados com desdém, o que contribui para que se perca o senso de pertinência e história, de proximidade familiar e de papéis sociais consistentes. Outros fatores como avanços tecnológicos, sobretudo na área da informática, contribuem para que as pessoas sejam cada vez mais auto-suficientes e tenham práticas profissionais solitárias.
Vivemos numa “borderland” onde se estimula a assertividade (que em doses exageradas beira a agressividade); o individualismo (que favorece solidão e alienação) e a autopreservação (“cada um por si, Deus por todos”). Nossa sociedade carece de constância e confiabilidade e é altamente alienante, favorecendo o aparecimento de comportamentos patológicos. Seitas religiosas que buscam organizar a realidade de forma simples e maniqueísta ganham popularidade, talvez como reminiscência nostálgica dos velhos tempos onde a família organizada ditava as regras do como viver.
Kreisman (12) faz uma comparação interessante. Diz: “… Nós rapidamente nos movemos da explosiva “Década do Nós” dos anos 60, para a narcísica “Década do Eu” dos anos 70 e, daí, para a materialista e rápida “Década do Poder” dos anos 80. Acompanhando estas mudanças externas aconteceram mudanças internas nos valores: da ideologia voltada para os outros “paz, amor e fraternidade” dos anos 60, para a de “autoconsciência” dos anos 70, para a “materialista de auto-procura” dos anos 80.”
Sabemos que muitas doenças físicas, como o estresse e todas as desordens que ele produz têm relação com o estilo de vida. Por que não pensar o mesmo a respeito das doenças mentais? Talvez elas sejam o preço psicológico que pagamos por nossa modernidade.
V- PSICODINÂMICA – COMO FUNCIONA O BORDERLINE
Imaginem uma pessoa que por algum erro constitucional nascesse sem pele: qualquer toque, por mais leve, provocaria dor e reação intensa. Assim é o borderline, o que lhe falta é a pele emocional.
Buscando, de modo simplista, a fórmula de produção desta patologia, poderíamos pensar que uma criança demasiadamente sensível, em contato com um ambiente invalidador, multi-abusivo e destruidor de sua autoconfiança básica, tende a desenvolver comportamentos defensivos que se constituirão nas próprias características do distúrbio.
Um ambiente pouco validador é aquele que não ensina à criança como lidar adequadamente com suas emoções. Este aprendizado inclui não apenas reconhecer e nomear diferentes emoções, como aprender a externá-las, contê-las, tolerar frustrações e, sobretudo, acreditar nas próprias respostas emocionais como forma válida de interpretar os fatos (autoconfiança básica). O peculiar deste aprendizado é ser, principalmente, não verbal: as crianças aprendem não só através daquilo que os adultos dizem mas, principalmente, através da observação sutil de como eles realmente são e de como agem.
As famílias disfuncionais destes pacientes tendem a lidar de forma inconsistente com manifestações emocionais: às vezes ignoram, às vezes minimizam e desconfirmam e, em situações extremas, apoiam e acolhem. É desta atuação inconsistente que algumas crianças aprendem a concentrar a energia na realização de algo “grandioso” que as façam sentir-se valorizadas, desviando de tarefas rotineiras a atenção necessária para lidar adequadamente com a realidade. Aos poucos, tornam-se mais dependentes menos competentes e responsáveis.
Por está razão, como adulto, o borderline busca a qualquer custo manter perto de si um cuidador. Sua atitude é passiva em relação àquilo que deve realizar mas é ativa, ao extremo, na busca de quem faça por ele. Isto é conseguido de muitos modos: ficando cronicamente doente, psicológica (depressão, anorexia nervosa, alcoolismo) ou fisicamente (gripes que não saram, queixas hipocondríacas); apresentando-se como pessoa ingênua para depois configurar o vínculo manipulador; criando confusão nos vínculos, sendo a eterna vítima injustiçada.
Pessoas que convivem com o borderline (familiares e terapeutas) têm a sensação de andar “pisando em ovos”; costumam dizer que ele nunca se satisfaz e as situações que cria parecem não ter saída. Precisa ter do que reclamar, talvez para manter alguém perto, tentando satisfazê-lo. E como provêm de ambientes onde suas necessidades13 de dependência básica foram negligenciadas, permanece fixado na busca do bom cuidador, o cuidador “perfeito”.
Como adulto, o borderline acaba reproduzindo as características invalidadoras de seu meio: invalida suas próprias experiências emocionais e busca nos outros interpretações sobre a realidade. É incapaz de resolver problemas rotineiros, tem dificuldades generalizadas de “como viver”. Formula objetivos pouco realistas, não valoriza pequenos êxitos e se odeia diante dos insucessos. A reação característica de vergonha é o produto natural de um ambiente que envergonha quem demonstra vulnerabilidade emocional.
O sofrimento e as reações emocionais são extremas: o que seria apenas embaraçoso, torna-se, para ele, profundamente humilhante; desagrado pode tornar-se ódio; culpa leve, torna-se vergonha; apreensão transforma-se em pânico. “Prisioneiro” das próprias emoções, basta um pequeno estímulo para provocar reações intensas, crises de fúria que confundem e assustam as pessoas à sua volta e ele mesmo. Cria grandes tragédias das quais reclama com fúria crescente, culpando os outros pela situação em que se encontra. Quanto maior a expressão da raiva, mais o borderline se convence e tenta convencer os outros de que são responsáveis por seus sentimentos. E como suas respostas emocionais são de longa duração (lento para voltar a um nível emocional adequado) permanece altamente sensível ao próximo estímulo.
Tendo seu desenvolvimento emocional detido nas primeiras fases, o borderline é uma criança num corpo adulto e, como a criança, é impulsivo, não sabe esperar, não aceita se frustrar, tem dificuldade em simbolizar conceitos abstratos.Tenta conseguir tudo que quer o tempo todo, a qualquer custo. Em resumo: o borderline tem imensa dificuldade em lidar de forma adequada com suas emoções e a terapia precisa encontrar caminhos: primeiro para não se deixar destruir por demonstrações emocionais grandiosas; segundo para não destruir a precária estrutura emocional que o paciente apresenta; por último, para conseguir formas criativas de fazer pequenos “enxertos” (ele não possui “pele emocional”) e dar algum invólucro que lhe possibilite crescer e se desenvolver dignamente.
VI- PSICOTERAPIA DO PACIENTE BORDERLINE
Há duas dificuldades fundamentais no tratamento terapêutico: A primeira é o que poderíamos chamar de colisão de objetivos, ou seja, aquilo que usualmente se aceita como objetivos válidos na terapia (compreender os próprios problemas, “curar-se”, empreender mudanças construtivas, etc.) não são as metas prioritárias do paciente. Ele, inicialmente, não quer se curar; até se orgulha de certa forma, da sintomatologia que apresenta, na medida em que ela testemunha as atrocidades pelas quais passou. O que ele busca no vínculo terapêutico é exatamente esta função-testemunha: alguém que veja e discorde das injustiças que lhe foram cometidas. Além disso (e aí o trabalho terapêutico se complica) , quer que o terapeuta o compense por tudo o que passou, quer ser gratificado em suas necessidades imediatas, cuidado e confortado. E ainda mais: quer um relacionamento intenso e especial para sentir-se importante. O discurso implícito é: “Não posso melhorar a menos que você, terapeuta, se importe pessoalmente comigo”.
M., 16 anos, revelou-se, desde o início, insegura e ansiosa por agradar. Estabeleceu um vínculo idealizado com a terapeuta, elogiando-a e encaminhando-lhe suas melhores amigas para tratamento.
Num psicodrama interno (a paciente recusava-se a dramatizar) T. sugeriu focar a relação terapêutica através de inversão de papéis: no próprio papel M. declarou-se encantada com T e desejosa de obter seu afeto de “forma especial”. No papel de T., mostrou-se inatingível, alguém a quem nada faltava e que embora apreciasse a paciente e seus “presentes” (encaminhamentos), não lhe dedicava o tal “lugar especial”. T. propôs,então, que ela se distanciasse e observasse esta relação, buscando em que outra relação de sua vida se sentira desta forma, gostando tanto de alguém que lhe parecia inatingível.
A paciente lembrou-se de um momento em sua infância, onde passeava com o pai verdadeiro, comportando-se de forma desagradável: queria deixar claro que amava mais o padrasto que assumira integralmente a função paterna; elogiá-lo diante do pai constituía a forma de expressar sua lealdade e, simultaneamente, vingar-se do abandono paterno. Rever esta cena levou a paciente a perceber várias tentativas fracassadas de tornar-se “especial”: não fora especial para o pai, que raramente a visitava; não era especial para a mãe que tinha outras prioridades; tampouco permaneceu especial para este padrasto, após o nascimento dos novos filhos do casal. Sua atuação na terapia era só mais uma tentativa de buscar este lugar “especial” inatingível.
A segunda grande dificuldade é o estilo de relacionamento que eles tentam estabelecer com o terapeuta: embora busquem, o tempo todo, gratificação de suas necessidades, não acreditam que isto possa ocorrer. Como muitas destas pessoas sofreram formas distintas de abuso infantil por parte de seus cuidadores qualquer vínculo que sugira cuidado pessoal, fica impregnado das desconfianças de outrora. Entretanto, é o firme estabelecimento do vínculo terapêutico e a sensação de ser compreendido e aceito que possibilita ao paciente olhar suas dificuldades e tentar reformular sua vida. Essa sensação de ser aceito e compreendido lhe é desconhecida e por isso precisa checá-la repetidamente; seus movimentos são de avanços e recuos e o terapeuta precisa, também, avançar e recuar a fim de manter o equilíbrio: um avanço ou um recuo exagerados poderá por a perder o trabalho já efetuado. O paciente estará, seguidamente, testando o quanto é importante para o terapeuta e ao menor sinal passível de ser interpretado como rejeição, pode agredir, interromper ou sabotar a terapia.
I., 34 anos, se mostrava crítica em relação a tudo o que T. dizia, à forma e momento em que o fazia, enfatizando discordâncias, fazendo T. sentir-se acuada, temerosa de ofendê-la. Nenhuma tentativa de esclarecer desentendimentos era bem sucedida pois a paciente iniciava confrontos, parecendo precisar um juiz para decidir quem tinha razão. Um dia T., abstraindo do conteúdo verbal das queixas, e focando apenas no sofrimento contido nestes episódios, disse-lhe :
— I., de algum jeito, algo que eu falo ou faço não intencionalmente, toca numa ferida sua. Me desculpe, ainda que eu não saiba o que fiz para te magoar, pois não quero instigar dores ou te prejudicar. Se tivermos paciência, poderemos descobrir juntas este ponto tão sensível.
A paciente ficou desconcertada e respondeu, chorando, que a culpa não era de T. mas sim dela, que criava brigas e confrontos em todas as suas relações. T pediu-lhe então que criasse um personagem para carregar esta sensação de injustiça que sempre a acometia, e ela produziu um Cruzado Medieval20, que defendia a Santa Igreja Católica.
I. permaneceu em terapia por 4 anos, e pode, através do Cruzado investigar várias situações de confronto e cenas infantis de violência doméstica. Com freqüência se recordava “daquele dia em que T lhe pedira desculpas”, assegurando que aquele fora o momento mais importante da terapia, sem o qual não teria podido continuar.
Além destas duas dificuldades fundamentais, existem muitas outras ao longo do processo terapêutico: às vezes, no meio de algum discurso simples e pouco importante, o paciente escala rapidamente para temas polêmicos e confrontativos. Outras, ao contrário, tenta agradar o terapeuta assumindo seus pontos de vista e formas de pensar. Muitos pacientes borderlines são francamente sedutores com os terapeutas mostrando provavelmente, a forma como obtinham consideração e carinho em épocas remotas. O terapeuta, várias vezes, é apanhado de surpresa como numa guerrilha: formas de relacionamento sedutoras se alternam com outras muito agressivas.
Vários autores (14, 15 ) chamam atenção para a necessidade de validação, suporte e empatia do paciente borderline, exatamente por ele ter vivido experiências infantis que invalidaram seu direito de existir, ter limites pessoais, desenvolver a individualidade e confiar na própria habilidade para perceber e julgar a realidade. Validar e afirmar, dar permissão, gratificar, são ações terapêuticas que as vezes se sobrepõem, criando confusões cruciais no processo terapêutico.
Validação e afirmação são ações que visam ajudar o paciente a desenvolver uma noção intrínseca de valor pessoal, através de uma re lação terapêutica de aceitação que busca iluminar qualidades do paciente por menores que forem. Isto nem sempre é fácil, pois eles trazem uma gama imensa de comportamentos inadequados e é preciso ser cuidadoso para não reforçar artificialmente, o que em nada contribuiria para a terapia. O fato dele ter sobrevivido em circunstâncias tão adversas e estar buscando terapia já representa, em si mesmo, um fato elogioso: é preciso coragem para enfrentar esta jornada.
P., 30 anos, chega em casa desejando atenção da esposa que se diz cansada e ocupada com o filho. Esta atitude é interpretada como rejeição e P. começa a agredi-la, primeiro verbal e depois fisicamente.
Na sessão, partindo da cena descrita chega-se a uma situação onde, com 3 anos, o paciente chuta a mãe após buscar seu colo e ser afastado.
Em espelho, T. lhe pergunta o que ele, como adulto, faria com esta criança na situação. Ele diz que a teria segurado antes que ela chutasse a mãe. T. sugere que ele assim o faça, usando uma almofada no lugar da criança. Ele abraça a almofada e chora.
Nos comentários as dores da criança frustrada na cena, e do homem carente chegando em casa são validadas, porém se reavalia a forma de lidar com a frustração e expressar as necessidades.
Afirmação real e continência também advém do respeito que o terapeuta tem pelo paciente, estabelecendo limites que ele, o próprio terapeuta, respeita (tempo, espaço, telefonemas). Freqüentemente o paciente borderline tenta fazer com que o outro o complemente patologicamente e transgrida os limites; é bom lembrar que seu desejo maior é o de ser ajudado a superar as dificuldades vivenciais, e é por aí que o terapeuta deve embasar sua conduta.
M. solicitava trocas de horários freqüentes, alegando impossibilidades rotineiras, solicitando horários incompatíveis. No final da sessão trazia assuntos importantes, retardando seu término.
Após um ano e meio de terapia, em determinada a sessão, recusa-se a sair da sala, incitando T. a tirá-la à força. Após breve discussão, T. decide deixá-la ficar na sala enquanto ela “precisar” e atender a próxima paciente em outra sala. M. permanece sozinha algum tempo e depois vai embora.
Na sessão seguinte chega desculpando-se, disposta a investigar o que ocorrera. Através de inversão de papéis, percebe que vinha observando enciumada a paciente seguinte, julgando que T. “certamente” a achava mais bonita e interessante . Suas associações conduzem para a relação com irmãos e pais, que “não a escolhem” a menos que ela faça algo grandioso, positiva ou negativamente. M. percebe como lhe é difícil sentir-se validada se apenas se comportar normalmente, aceitando os limites colocados.
Outra forma de afirmação é confirmar a percepção que o paciente tem dos próprios pais e daquilo que lhe fizeram. O terapeuta seria uma testemunha deste abuso, devendo ajudar o paciente a chorar seus lutos e sua dor, re-enfocar e instrumentar melhor sua raiva. Na maior parte dos casos o paciente volta a raiva contra si mesmo, o que constitui uma das razões para a bizarra conduta auto-destrutiva que vemos nestes casos. Aqui é preciso cuidado para não criticar excessivamente os pais da infância, o que significaria criticar partes do próprio paciente.
D., 17 anos, há 2 anos em terapia, ensaia há um mês contar um segredo. Finalmente conta que aos 5 anos de idade, permitiu ser manipulada sexualmente por um primo já adolescente. Sua mãe descobriu o fato e, furiosa, criticou-a contando o ocorrido aos adultos próximos de forma pouco respeitosa. Dessa experiência, D. conclui que fizera algo muito feio, que ela mesma era má e errada e que deveria envergonhar-se.
T. lhe pede que assuma o papel da menina de 5 anos, perguntando-lhe o que poderia tê-la ajudado a superar melhor a experiência. D. responde que a discrição e o apoio da mãe explicando-lhe o que fizera de errado, teriam ajudado. Da forma que ocorreu, ensinou-lhe desrespeito, vergonha e culpa.
T. concorda com sua colocação, testemunha sua dor e favorece que ela expresse a raiva pela mãe. O passo seguinte é rever a vergonha e relativizar as conseqüências daquela experiência sexual, uma vez que o que para uma criança parece grave e definitivo, não o será numa ótica adulta.
Permissão ( 16) é um conceito mais complexo pois implica em validar o direito que o paciente tem de sentir e expressar suas próprias emoções (raiva, amor, egoísmo) e ser respeitado como ser humano. É comum o paciente não conseguir desligar-se de pessoas que outrora lhe foram abusivas e precisa obter, na terapia, esta permissão.
VII- PONTOS VULNERÁVEIS DO TERAPEUTA
A terapia do paciente borderline é bastante delicada e inclui fortemente a própria relação terapêutica. Como o borderline é a eterna criança mal amada em busca do bom cuidador, tentará fazer com que o terapeuta preencha esse papel. Ao terapeuta cabe a difícil tarefa de aceitar e validar os sentimentos do paciente sem entrar em conluio com sua parte atuadora, evitando tornar-se responsável por ele na realidade.
O terapeuta precisa acreditar que o paciente possui o potencial necessário para a mudança e ajudá-lo, terapêuticamente, no reconhecimento de emoções e na conquista de confiança nas suas percepções.
A questão da gratificação das necessidades é a mais crucial: como já dissemos, toda a atuação do paciente para com o terapeuta visa a busca de um lugar de importância especial frente a este. Autores17 que estudaram diversos casos citam complicações terapêuticas e legais que resultaram da falta de discussão deste tópico (ameaças de suicídio condicionadas a determinadas ações do terapeuta, ações litigiosas alegando abuso sexual ou imperícia movidas por pacientes, etc.) Especialmente questões como contato corporal com os pacientes (abraços em momentos de muita tensão); mudança em horários de atendimento para dias e períodos especiais, permissão para telefonemas extensos e em horários incompatíveis, são pequenas concessões que o terapeuta inicia por fazer quase inconscientemente e que costumam evoluir a ponto de invalidar o “set” terapêutico.
Por que será que mesmo terapeutas experientes costumam responder desta forma aos apelos do paciente borderline? Provavelmente pela extrema vulnerabilidade destes pacientes e por uma certa dose de contra-transferência onipotente de salvadores do mundo18 que todos nós temos. 0 excesso de gratificação ou sua falta prejudicam e até sabotam a terapia. O borderline, provavelmente como todos os psicóticos, tem a capacidade de cruzar a barreira profissional, como necessitando sentir a pessoa real do terapeuta. Regras de assepsia profissional muito rígidas funcionam mal com estes pacientes, que se sentem desvalorizados, desconfirmados e ficam furiosos.
É muito difícil para alguém com estas dificuldades vivenciais ouvir a verdade. Esta “criança dentro do corpo adulto” faz qualquer coisa para não perceber que a infância já passou e que as regras e privilégios do mundo adulto são diferentes agora. Por isso suporte e empatia são fundamentais o tempo todo: sem isso o borderline não ouve as colocações, pois sente-se mal compreendido. Estas são as ocasiões em que briga com os terapeutas, ou seja, quando algo foi dito, a respeito da realidade, sem o suporte ou a empatia adequados. As dificuldades da terapia são inúmeras: o paciente borderline vive num estado de intenso sofrimento e, muitas vezes, situações se precipitam e tornam-se tão complicadas que fica difícil focar o fato que as gerou. A sensação é de estar construindo uma casa no meio de um furacão, o que pode ser bastante desanimador para o terapeuta. Além disso, como o paciente lida mal com todas as suas emoções, também lida mal com a raiva estando sujeito a comportamentos agressivos e explosivos. O risco aqui é o terapeuta somente interpretar a raiva, sem perceber que ela esconde intensa vulnerabilidade.
Finalizando é preciso alertar para o perigo que Marsha M. Lineham denomina “culpar a vítima”. No início do tratamento, o terapeuta se sensibiliza com o intenso sofrimento do paciente e tenta revertê-lo mas, na medida em que os esforços parecem inúteis, pode culpá-lo por causar a própria desgraça (não quer mudar; está resistindo à terapia). O que ocorre aqui é que o terapeuta observa a conseqüência do comportamento e a atribui a motivos internos e deliberados do paciente. Nessa situação fica fácil resignar-se ao fracasso culpando o paciente pela interrupção do tratamento e eximindo-se de responsabilidades.
VIII- O PACIENTE BORDERLINE E O PSICODRAMA
“Parece não haver nada para que os seres humanos estejam pior preparados e o cérebro humano pior equipado do que para a surpresa” Moreno
Tendo em vista o caráter relacional do Psicodrama é fácil perceber sua adequação no tratamento do paciente borderline, onde a relação paciente-terapeuta é o instrumento fundamental. Além de um relacionamento terapêutico intenso, que oferece chance de “corrigir ao vivo” formas de relacionar-se, o Psicodrama, graças a seus recursos técnicos, consegue entrar sutilmente no campo de defesas intra-psíquicas, fazendo com que o paciente possa relacionar-se com partes cindidas de si.
Trata-se de um movimento dialético entre um mergulho nos bastidores da vida psíquica, onde feridas relacionais do passado se armazenam erigindo exércitos de defesas caracterológicas e a volta para o aqui e agora, de uma relação continente e validadora, que testemunha a dor de outrora e proporciona novo modelo relacional reparador.
O paciente borderline, habituado a se defender verbalmente, se surpreende com o Psicodrama: não consegue controlar e prever nem as ações do terapeuta, nem suas próprias reações e associações. Isto representa grande vantagem para o terapeuta, que deve entretanto ser cuidadoso com o ” timing” e a sensibilidade do paciente.
P., na montagem de cenas, já entrava nos papéis e contra-papéis dialogando ferozmente, mal permitindo compor o cenário. Achava perda de tempo detalhar o espaço, sempre premida pela urgência em terminar logo a tarefa. Um dia, após breve descrição de seu quarto, T. lhe pede que troque de lugar com a chave. Surpresa ela comenta que nunca tivera uma chave na porta e, emocionada, conta que aquela porta não protegia sua intimidade e que por lá entrava de madrugada um pai que a observava desnuda.
Muitas vezes o paciente se mostra muito aquecido, trazendo material de cunho íntimo como que desvelando impulsivamente toda sua dor. Uma aproximação demasiadamente brusca corre o risco de se deparar com a falta de estrutura elaborativa do paciente que depois, invariavelmente, se sentirá lesado . Muitas vezes trata-se de desaquecer o paciente para que ele vá devagar no aprofundamento de suas questões e aja de forma responsável pelo seu nível de auto-exposição. Montar cuidadosamente as cenas, pedir inversões de papéis com objetos do ambiente, entrevistar cuidadosamente personagens coadjuvantes, são formas de desaquecimento estratégicas.
A técnica do duplo é preciosa mas perigosa para ser utilizada com o borderline. O cuidado se refere, principalmente, à questão do “timing” apontada anteriormente. O paciente negará o duplo se este não estiver sintonizado com sua vulnerabilidade. Aliás, o melhor duplo com um paciente enfurecido é o que aponta a tristeza, a mágoa, a decepção, os sentimentos de humilhação e vergonha que levaram à resposta defensiva. Um duplo que aponte o caráter manipulativo do comportamento agressivo precisa ser introduzido cuidadosamente e só após a afirmação de seus aspectos fragilizados.
R. 30 anos , há 2 em terapia, chega à sessão raivosa com os demais colegas de grupo que não lhe telefonaram durante a semana como fora combinado. Agride furiosamente a todos e à terapia, alegando não poder confiar em pessoas tão irresponsáveis Os colegas tentam justificar-se, mas a todos R. rebate com fúria crescente, não aceitando desculpas e invalidando quisquer tentativas de conciliação.
T.experimenta fazer um duplo do grupo expressando a impotência diante da situação. Isto aumenta a fúria de R., que se sente novamente agredida, alegando que o grupo transformara-se em vítima e ela em vilã, quando o que ocorria era o inverso. T., então, coloca-se a seu lado e diz baixinho:
– “Eu queria tanto ser compreendida, não acusada…. me sinto tão triste…. eu queria tanto ter estado com vocês durante a semana……. tudo deu errado! E agora, …. está tudo ficando pior ainda…. não sei como consertar……me sinto cada vez mais sozinha!”
A paciente, ao ouvir o duplo, começa a chorar e, aos poucos, mudando sua postura, permite ao grupo aproximar-se e conversar com ela. A técnica do espelho é muito útil para permitir visão à distância do jogo de forças envolvidos nas interações bem como da psicodinâmica produzida. O terapeuta pode, nesta situação, formular uma síntese daquilo que a cena mostra, acentuando partes que o paciente não se deu conta ainda. Seria uma re-interpretação “in loco” de fatos que o paciente interpretou de outra forma. Constitui-se num lugar privilegiado de insights tanto para o paciente como para o terapeuta. Entretanto, é importante que o terapeuta seja fiel aquilo que o paciente traz, não acrescentando conteúdos próprios ou teóricos.
L.,20 anos, não resiste às drogas, porém sempre se arrepende após usá-las. Partindo da situação em que cede ao uso da droga, L. chega a uma cena em que, com 4 anos, sozinha em casa sentindo-se triste e abandonada, pensa que se ela se machucasse os pais voltariam para cuidar dela. Ato contínuo, pula sobre a bola com a qual brinca, joga-se de encontro a parede com força ferindo-se a ponto de sangrar. Os pais são chamados e voltam imediatamente para socorrê-la, o que a deixa feliz apesar da dor.
Em espelho T a estimula a observar o que está acontecendo a partir de seu papel atual, adulto:
– ” Olha o que está acontecendo com aquela menina. Ela está aprendendo que machucar-se, agredir-se é um bom método para conseguir atenção e é isso que vai seguir fazendo através de sua vida. Sua capacidade auto-destrutiva irá num crescendum: vai, envolver-se em acidentes, ingerir álcool, drogas cada vez mais pesadas… Será que era isto o que ela queria ? Antes de começar a se machucar o que você acha que ela precisava?”
L.. observa tristemente, dizendo que ela precisava de amor e aconchego, o que aqueles pais eram incapazes de dar de forma espontânea. T. pede-lhe então que ela, adulta, acolha sua menininha carente e veja se, juntas, desejam manter o pacto de auto-destruição e se continuam achando que aquele é um preço razoável para conseguir amor e atenção.
L. segurando a almofada que representa a menina diz, afetuosamente, que não era isso o que queria e que precisará, com o tempo, descobrir outro caminho, ainda que nem desconfie qual seja.
A técnica da realidade suplementar é um recurso valioso na terapia do paciente borderline pois permite que ele entreveja, ainda que na fantasia, soluções necessárias para as várias situações sem saída que freqüentemente se propõe.
D. 27 anos, há 4 em terapia, insatisfeito profissionalmente, queixa-se de assumir responsabilidade maior do que a do sócio na empresa de ambos. Ao discutir esta questão com o sócio torna-se ressentido e agressivo internamente, mas sua atitude aparente é de submissão e impotência. Numa cena onde apresentava esta reação T. lhe pede outra situação de sua vida onde se sentira da mesma forma. Prontamente D. traz uma cena, já bastante conhecida de T. em que, aos 6 anos após o suicídio da mãe, tenta desesperadamente agradar o pai,sentindo-se fraco e indefeso na ausência de outras pessoa que cuidem ou apostem nele.
– Invente os pais que você gostaria de ter, sugere T. B., visivelmente encantado, escolhe pessoas de quem gosta muito no grupo para o papel desses pais ideais, continentes e incentivadores. Gasta um bom tempo “curtindo” e aperfeiçoando os pais, até se dar por satisfeito.
– Vamos voltar à cena com o seu sócio, propõe T, só que desta vez você terá atrás de si os “bons pais”, que vão torcer por você.
B. endireita sua postura e, calmamente, diz para o sócio:
– Há tempos estou descontente com o rumo que as coisas estão tomando na empresa. Acho importante discutir o assunto, porque cogito romper a sociedade.
Na sessão seguinte, B. conta que o “casal de pais postiços” parece ter lhe injetado uma força que o está ajudando a resolver não só a situação da sociedade, como outras situações emperradas da sua vida.
Uma técnica para trabalhar aspectos agressivos do paciente é a combinação da concretização da raiva com a interpolação de metáfora que possa simbolizar o produto concretizado. Cukier descreve o trabalho de interpolação de personagem, mostrando como através do relaxamento do campo intrapsíquico é possível o favorecimento da vivência de papéis reativos e defensivos, destacando-os do resto da personalidade. Acreditamos que quando um paciente borderline começa a compreender o caráter defensivo de suas partes agressivas, estas partes ganham dignidade e ele já pode não se identificar com elas, mas buscar ativamente uma forma mais hábil de se defender. Esta técnica, somatória de concretização com interpolação de metáforas, é muito útil com esta finalidade.
Para finalizar, gostaríamos de comentar brevemente a técnica psicodramática básica: inversão de papéis. Vivenciar o papel do outro possibilita ao paciente absorver aspectos da relação que não havia imaginado e permite, ao terapeuta, uma visão mais global da psicodinâmica do processo. Freqüentemente, quando estamos investigando cenas da infância no caso de pacientes borderlines, nos deparamos com um “outro”, adulto abusivo. É importante que o paciente tenha confirmada sua vivência do abuso mas é igualmente importante que possa, eventualmente, resgatar aspectos positivos destas relações primárias sem, entretanto, negar o abuso sofrido e a emoção conseqüente.
S. 28 anos, que apanhara sistematicamente com uma vara de marmelo na infância, conta quando T. o entrevista no papel da mãe, que tambèm tinha apanhado, mas com um fio de cobre a. Sua intenção ao bater no filho com a vara de marmelo era dar-lhe a mesma educação, machucando-o menos.
Perguntar pela real intenção do adulto abusivo pôde, neste caso, resgatar um aspecto até generoso da mãe, o que confortou o paciente de alguma forma.
VII. CONCLUSÃO
Atender pacientes borderlines representa um desafio constante para o terapeuta. As dores de uma infância carente de cuidados básicos e validação impregnam a forma de vinculação possível para estes pacientes tornando-os desconfiados, exigentes, estrategistas, eternamente insatisfeitos. Alcançar equilíbrio entre atitudes de aceitação, suporte e validação, por um lado e colocação de limites estruturadores da realidade por outro, representa a difícil tarefa do terapeuta.
Nessa tarefa, constitui-se numa armadilha constante o papel sedutor de “salvador “, buscando preencher as enormes carências do paciente, versus o de “culpabilizador da vítima”, responsabilizando-o pelo fracasso da terapia. A construção de uma “pele emocional ” que possa ajudar o paciente a conter e organizar suas emoções se faz num vínculo terapêutico criativo, através de pequenos enxertos que permitem dar um invólucro para que estes pacientes possam crescer e se desenvolver dignamente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Cukier, Rosa – Psicodrama Bipessoal – sua técnica, seu paciente e seu terapeuta, Editora Ágora, 1992.
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Falivene, Luis R. Alves- Jogo: Imaginário autorizado e exteriorizado” ” in “O jogo no Psicodrama” Júlia Mota,Ed Ágora, 1995 pg. 45/56
Herman, J. L. – Trauma and Recovery, Basic Books, NY, 1992
Kreisman, J. Jerold and Strauss, H.- I hate you don’t live me – Understanding the Borderline Personality, Avon Books, N.Y. ,1989.
Kroll, Jerome – PTSD/ Borderlines in Therapy: finding the balance W. W. Norton and Company Inc. 1993.
Lineham, M. Marsha- Cognitive Behavioral Treatment of Borderline Personality Disorder, Guilford Press, 1993.
Mahler, M. – O Nascimento Psicológico Humano, Zahar Edit., 1977.
Miller, Alice – O drama da criança bem dotada, Edit. Summus, 1986.
Millon, T. – On the genesis and prevalence of the borderline personality disorder:A social learning thesis,1987, Journal of Personality Disorders 1 pg.354/372.(citado porMarsha Lineham, 1993).
4 Lineham, M. Marsha – Cognitive Behavioral Treatment of Borderline Personality Disorder, Guilford Press, 1993 pg.3
5 Millon (1987) sugeriu o termo personalidade ciclóide para enfatizar a instabilidade comportamental e de humor que achou central nestes quadros.
6 Manual de Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais (3ª Edição-Revista) DSM-III-R. Editora Manole Ltda, 1989 p. 366-367
7 Não inclui comportamento suicida ou auto-mutilante, coberto no item 5.
8 Este ítem foi incluído recentemente e aparece no Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 4ª edição, 1995, pg. 617.
9 Herman, Judith Lewis – Trauma and Recovery, 1992 pg. 123-129
10 Mahler, Margareth – O Nascimento Psicológico Humano, pg 82-95
11 Erikson, Erik -Identidade, juventude e crise, 1968, pg.107-115
12 Kreisman, J.Jerold e Strauss Hal -I hate you – don’t live me (1991)
13 Cukier, Rosa – Como sobrevivem emocionalmente os seres humanos? 1995, pg. 65-69
14 Lineham (1992), Kroll (1994)
15 Kreisman (1989) sugere um tipo de terapia com tres fases que se alternam e que denomina de SET: Suporte, Empatia e Verdade (truth). O suporte consiste num reasseguramento pessoal por parte do terapeuta.. A empatia se refere à experiência de ouvir o paciente, poder, eventualmente, inverter lugar com ele, captar sua posição existencial, A colocação da verdade enfatiza que ele é responsável por sua vida.
16 Luíz Falivene (1994) introduz as noções de “autorização externa e interna”, O terapeuta ao permitir e validar emoções e condutas, funciona como nova autoridade externa que visa reforçar a autoridade interna do paciente.
17 Kroll, J.- PTSD/ Bordelines in Therapy: finding the balance, 1993
18 Miller, Alice , em O drama da criança bem dotada mostra como boa parte dos terapeutas advêm de famílias onde lhes era solicitados serem filhos bonzinhos que auxiliavam os pais.
19 Linehan, Marsha M. 1993, pg. 97
20 Cukier, Rosa – Psicodrama Bipessoal – sua técnica seu paciente e seu terapeuta pg. 101-107
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INTRODUÇÃO
Já há algum tempo, tenho me deparado com algumas questões clínicas que instigaram a minha curiosidade e resultaram no trabalho que ora estou apresentando.
A primeira destas questões se refere ao fato de que após algum tempo de terapia, podemos perceber que existem algumas cenas nucleares, que tal como um imã, parecem sugar as associações do paciente. Como se fossem cenas matrizes, aonde algo fundamental se estruturou enquanto defesa de uma situação traumática primeiro, e, com o uso e o passar dos anos, acabou fazendo parte da identidade básica e do caráter do paciente.
Vou descrever, brevemente, quatro casos clínicos para exemplificar o ponto que estou tentado focar:
Pac. A – bem sucedido empresário de 34 anos, deprimido por problemas no casamento. Queixa-se que, desde o nascimento do seu primeiro e único filho, a esposa não lhe dá toda atenção que quer. Tem acessos de violência física que não consegue conter, aonde arrebenta objetos da casa e chega a bater na esposa. Numa das cenas que freqüentemente traz com suas associações, é de madrugada, tem 5 anos , ouve o pai bater na mãe; em outra cena, tem 4 anos, a mãe está cozinhando e ele fica atrás dela, querendo colo. Os irmãos mais velhos riem dele, chamando-o de ” maricas “.(sic)
Pac. B- 25 anos. É uma mulher extremamente bonita que vive num quase total isolamento social, queixando-se de depressão e de perseguição por parte colegas, que rivalizam com ela. Profissionalmente, nunca fica nos empregos pois, sente uma compulsão a paquerar os chefes, com quem namora um pouco e é mandada embora. Diz que quer casar e ser rica.
Dentre as cenas nucleares que traz destaco duas: Na primeira, tem 6 anos, mora com os avós maternos e sua mãe, que é mãe solteira e empregada doméstica, vem visitá-la no domingo. Estão todos à mesa e a mãe se põe a querer lhe ensinar bons modos à mesa, modos que ela aprende na casa dos patrões. A paciente se sente inferiorizada diante destas pessoas que a mãe admira. Na segunda cena, tem 5- 6 anos e vai pedir a bênção para o avô, antes de dormir. Ela sabia que o avô não lhe daria a bênção pois, ele sempre dizia que jamais abençoaria a filha bastarda de uma mãe que não prestava. Nesta cena o avô novamente a humilha, repetindo o maltrato.
Pac. C- sexo masculino, 27 anos, há 5 em terapia. Apresenta dificuldades de contato social generalizada, levando uma vida restrita à casa e ao trabalho. Possui poucos amigos e nunca teve uma namorada, apesar de já ter se apaixonado e ter interesse pelo sexo feminino. É freqüentemente acometido de raiva contra as pessoas que por alguma razão o desconfirmam, dizendo que admira o poder que Adolf Hitler tinha para se vingar de quem ele não gostava. Numa das cenas que se repetem sempre em suas associações, tem entre 4 a 5 anos, a mãe está brigando com ele (não se lembra a razão).Ele se tranca no banheiro e, de raiva, morde a cortina de plástico . A mãe o alcança e bate em suas pernas com uma vara de marmelo, até que ele se curve e peça desculpas jurando nunca mais desobedecê-la. Em outra cena o paciente tem entre 5-6 anos, aceita um brinquedo de um porteiro que cuida de uma obra em frente à sua casa, e acaba sendo manipulado sexualmente. Só mais tarde entende o significado do fato se mortificando de arrependimento e medo de ser menos homem do que os outros meninos.
Pac. D- 35 anos. Mulher, importante executiva de uma multinacional, razoavelmente bonita que, entretanto se queixa de solidão, vazio existencial e problemas de relacionamento social. Costuma ter namorados por pouco tempo e nunca sabe o que acontece para os namoros terminarem, acha que os homens não prestam. Dentro da própria família e no trabalho é tida como encrenqueira, estúpida e se acha profundamente injustiçada por estas críticas, porque “sempre faz tudo para ajudar todo mundo”(sic) . Uma das cenas recorrentes em suas associações é a despedida dos pais que emigraram para a Europa quando tinha 7 anos . Queria mas não podia chorar porque sua mãe estava muito sensibilizada e choraria também. Comportou-se como uma pequena adulta “equilibrada” ( sic). Em outra cena , tem 7 ou 8 anos e ouve as confidência íntimas da avó que tem um mau casamento e insiste serem todos os homens mulherengos e desleais.
Pois bem, reparem como estes quatro pacientes sofreram formas variadas de abuso infantil: o Nº 1, assistia seu pai bater na mãe; Pac. nº2- ouviu durante toda a infância que sua mãe não prestava e ela tampouco; o Pac.. 3 apanhava até se dobrar de humilhação, além de ter sido abusado sexualmente; a pac.nº4- era obrigada a ouvir, sem compreender, a intimidade afetiva e sexual de sua avó .
Estas quatro pessoas também repetem , cada um a seu modo, o drama infantil: A – bate na esposa; B- tornou-se “a mulher que não presta”; C- é , no seu delírio esquizóide, um Hitler com poderes ilimitados , e que pode manipular a seu ” bel – prazer” as pessoas; a vida amorosa da pac.D. confirma a opinião da avó “de que nenhum homem presta”( sic).
Na vida adulta as quatro crianças submetidas de outrora, tornaram-se adultos poderosos que batem, brigam, manipulam e matam ( simbolicamente) pessoas. O que se passou, me pergunto? Porque estas pessoas repetem ativamente aquilo que sofreram passivamente na infância? O que acontece no psiquismo humano e que faz a memória destas cenas ficar tão marcada e não outras lembranças, aonde as mesmas pessoas talvez tivessem sido bondosas e gentis? Porque é tão difícil para o paciente mudar sua conduta, mesmo que ele já tenha compreendido a repetição? Nós, humanos, somos como as aves, que fazem imprinting de situações emocionais e corremos o resto da vida atrás de bolas de tênis pensando que são nossas mães?
Por outro lado , quando convido estes pacientes a dramatizarem suas cenas e começamos a pesquisar o locus, o status nascendi e a matriz ( Bustos, 1994: 63-77) * de suas dificuldades atuais, acabo sempre me deparando com um outro conjunto de fatos que me deixam intrigada. Estas cenas ocorrem na primeira infância, em geral antes dos 7 anos de idade. O conteúdo do drama que trazem é, freqüentemente, o de uma criança sendo frustrada e/ou punida por algum desejo , travessura e /ou, uma criança assistindo alguém em casa sendo desrespeitado, violentado por um adulto que exerce e abusa do poder que tem. Existe um enorme desequilíbrio de forças na cena, e tudo o que a criança pode fazer é ficar passiva, assistindo e se submetendo ao poder do adulto.
A criança percebe que o adulto está sendo injusto ou abusivo, sente raiva, mas nada pode fazer a não ser se submeter. Esta submissão forçada gera, por sua vez, sentimentos de vergonha, humilhação e inferioridade, que não serão jamais esquecidos, apesar de todos esforços que fizer para negá-los, disfarçá-los e/ou modificá-los.
Nestes momentos de tensão a criança decide algo secreto, como se fosse uma espécie de juramento consigo mesma, e que consiste, basicamente num pacto de vingança e ou de resgate da dignidade perdida. Algo como : “—Quando eu crescer e tiver o poder físico que os adultos têm, não vou nunca mais permitir que façam isso comigo ou com as pessoas que amo “.
Em suma, por trás das dificuldades dos meus clientes adultos, comecei a perceber a existência quase sistemática, de uma criança com seus projetos de vingança e resgate da dignidade perdida, e que, exatamente pela perseverança do projeto infantil, acabava criando as dificuldades adultas atuais.
Feito um disco avariado que gira em falso e entoa sempre a mesma parte da canção, parece existir atrás do drama atual e real das pessoas adultas uma dramática ** interna que repete o drama infantil, só que, freqüentemente com papéis trocados. Quem agora abusa do poder que tem, impinge humilhação e vergonha aos outros é o próprio paciente.
Enfim, nos últimos três anos tenho ido atrás destas respostas. Primeiro comecei a ler exaustivamente a literatura disponível sobre narcisismo, auto-estima, psicologia do ego e finalmente me deparei com uma abordagem americana ( Mellody,P., 1989) que descreve a existência de uma patologia vincular chamada codependência**. Também acabei tomando contato com estudos sobre personalidades fronteiriças ou borderlines e distúrbios narcísicos de personalidade.
Dentro do psicodrama moderno são as postulações teóricas de José Fonseca ( 1980) sobre a Matriz de Identidade, mais recentemente sobre Distúrbios de Identidade (1995:22), somadas as de Dalmiro Bustos (1994:63-77) sobre o conceito de Clusters e sua ênfase nos três pilares básicos da Filosofia do Momento de Moreno: Locus, Status Nascendi e Matriz , as setas que guiam o meu entendimento clínico. Quanto à Moreno , além de toda a sua obra , é sua coragem, genialidade e pioneirismo que estimulam a minha espontaneidade e minha vontade de criar.
As idéias que mostro a seguir falam de como estou , atualmente, compreendendo estas questões.
COMO SURGE UMA CRIANÇA FERIDA DENTRO DE NÓS?
Os seres humanos exercem um enorme poder uns sobre os outros, um poder de vida ou morte. Do ponto de vista fisiológico , os seres humanos se reproduzem de forma muito semelhante a todos os animais mamíferos e, nascem quando saem do útero materno. Do ponto de vista psicológico, entretanto, sua reprodução é totalmente original e peculiar. Psicológicamente o ser humano nasce aos poucos e nem sempre totalmente, dependendo de sua garra pessoal e da sorte de encontrar pais que saibam administrar suas necessidades básicas.
Por necessidades básicas entendendo aquelas das quais depende a sobrevivência física e psicológica da criança, e elas são de duas ordens:
- FISICAS- o bebê humano nasce extremamente frágil necessitando de cuidados físicos ( alimentação, higiene, saúde, calor, estimulação tátil, etc.) sem os quais morre. O foco é sobre o Quê é feito à criança.
- EMOCIONAIS- a necessidade emocional básica do ser humano e sem a qual ele não sobrevive Psicológicamente é a necessidade de dependência, de poder contar com o outro. O bebê humano nasce completamente despreparado e só será autônomo, com recursos internos com os quais possa contar, depois de muitos anos ( na classe média de nossa cultura urbana, só após a adolescência). Aqui o que importa não é ter as necessidades físicas atendidas, mas Como isto é feito.
Além disso , a primeira etapa de nossa vida é pré-verbal e tudo o que ocorre conosco depende da decodificação verbal e emocional que nossa mãe/ ou cuidador fizer. Sem alguém que possa espelhar nossas necessidades e emoções não teremos jeito de saber quem somos. Por outro lado a forma como esta pessoa decodifica nossas mensagens acaba constituindo aquilo que somos, e ela o faz de acordo com seu próprio patrimônio de vivências emocionais.
Este primeiro cuidador ou cuidadores funcionam como uma espécie de ponte relacional entre a criança e o mundo e ocupam, num primeiro momento o lugar que o” EU”* da criança ocupará mais tarde. Nós somos ” NÓS” antes de sermos “EU”, ou seja é o relacional, sobretudo a relação que estabelecemos com os nossos primeiros cuidadores, a pedra inaugural da nossa identidade ( Erikson,E.,:1976) ** e também refletirá quais serão as nossas expectativas de relacionamento com o mundo .
” A forma como uma criança percorre sua matriz de identidade é um parâmetro de como será sua vida adulta”, diz José Fonseca ( 1995:22) , se referindo não só à relação diádica mãe – filho, mas à resultante emocional de todas as relações envolvidas nesse núcleo, ou seja, a rede de relações familiares, aos fatores biológicos, psicológicos e sócio – culturais. Amor , respeito e confiança ( auto-estima), que um indivíduo sente por si mesmo, espelha por seu turno , como foram suas primeiras relações estruturadoras e prognostica, em última instância, como serão suas relações com o mundo. Portanto é extremamente importante estudar as peculiaridades desta relação de dependência.”
O QUE É E COMO É DEPENDER DOS OUTROS?
Depender de outra pessoa significa ter que se sujeitar e submeter à vontade dela. Quem depende é o frágil e impotente na situação, enquanto o outro pólo é potente e decide se as coisas irão ou não acontecer, e como e quando serão feitas. Por outro lado , ter pessoas que dependam de nós também não é normalmente uma situação confortável. Significa ter que abdicar parte do nosso tempo, espaço, conforto, e autonomia para esta pessoa.
Se perguntarmos para nosso conhecidos e para nós mesmos se gostamos de depender dos outros como adultos, é provável que a resposta seja negativa em 90% dos casos, e que as recordações que temos sobre situações de dependência venham mescladas com sentimentos de vergonha e humilhação.
Moreno (1946:296), descrevendo a função do ego auxiliar nas relações interpessoais, destaca que por mais que o ego auxiliar esteja unificado com o paciente , esta unidade nunca é completa, em virtude das limitações orgânicas e psicológicas. Diz:
“ A mãe é um ego auxiliar ideal do bebê de quem está grávida. Ainda o é depois de nascer a criança a quem ela alimenta e de quem cuida, mas o distanciamento orgânico e psicológico manifesta-se cada vez mais, depois que o bebê nasceu. A mãe é um exemplo de um ego auxiliar instintivo”.
Hoje em dia sabemos que a natureza não dota as mães de paciência excepcional e que nem todas elas sabem por instinto, como oferecer uma situação de dependência ideal para suas crianças ( Badinter,E.,1980).*** Muito pelo contrário, o que normalmente encontramos são mães impacientes, cansadas, que buscam atender rapidamente seus filhos para poderem ir trabalhar ou fazerem outras coisas que lhes suscitam o interesse.
Na realidade, a disponibilidade da mãe para o seu bebê vai depender de fatores extremamente complexos que vão desde a sua infância e a forma como ela mesma viveu a dependência com seus pais, até as peculiaridades atuais de sua relação com o marido, da situação sócio-econômica e cultural da família, como a sociedade atual valoriza ou não o papel materno, etc.
Nós sabemos pelos estudos de morbi-mortalidade infantil* quantas crianças sobrevivem até o final do primeiro ano de vida, mas não temos a menor idéia de quantos sobrevivem psicológicamente de forma completa, porque nem temos idéia do que isto quer dizer.
Os nossos pacientes freqüentemente reclamam dos pais contando situações de violência física, psicológica e sexual, além de falta de apoio e informação. Freud ( 1914:1901) primeiramente avalizou estas queixas dos paciente e, num segundo e definitivo momento, negou-as completamente, remetendo à sua fantasia , estes pais abusivos. Outras abordagens acreditam que culpar os pais represente, na realidade, uma recusa do paciente em assumir a responsabilidade pelo próprio destino.
Só nos últimos anos, e devido aos conhecimentos advindos das terapias sistêmicas, podemos começar a vislumbrar a complexa teia das relações intra-familiares, e a natureza de um fenômeno que poderia ser chamado de ” contágio psicológico” e que significa a passagem de geração a geração, de carências fundamentais nas relações de dependência básica, e que acabam por impregnar toda a capacidade de relacionamento humano do indivíduo.
O QUE SIGNIFICA, EXATAMENTE, NECESSIDADE DE DEPENDÊNCIA BÁSICA DO SER HUMANO?
Para responder a esta questão, preciso antes descrever, rapidamente quatro características naturais da criança, que fazem dela um autêntico ser humano e que são muito bem resumidas por Bradshaw (1988) :
Ela é valorizável– uma criança não nasce com auto-estima e nem tem noção alguma do seu valor pessoal Ela irá absorvendo este valorde fora para dentro, de acordo com a estima e dedicação que seus pais têm por ela. No início da vida isto pode significar um toque e um olhar especiais ( Kohut, H., 1977)* , presença constante e previsível, espelhamento correto das necessidades físicas, etc. Com o desenvolvimento, este dedicar valor ao outro vai , progressivamente se transformando em atitudes mais complexas, e que exigem grande maturidade dos pais, tais como, permitir que a criança experimente sua autonomia crescente sem ameaçá-la com a retirada do amor .Margareth Mahler (1977) observando o desenvolvimento infantil passo a passo durante muitos anos, descreve mães que não conseguem suportar o desligamento gradual do bebê . Elas o despersonificam, desencorajando suas buscas tateantes na direção de um funcionamento independente, em vez de permitir e promover a separação gradual. Outras mães com características simbióticas, de início se agarram aos bebês para depois empurrá-los, precipitadamente para a “autonomia”.
Uma forma extremamente poderosa de pressionar a criança, a fazer o que os pais querem é dizer-lhes: ” Se você não fizer isto, mamãe e papai não gostarão mais de você !” Outra forma, freqüente, de se jogar com este poder de atribuir valor à criança é compará-la com outras crianças, fazendo com que ela se sinta menos que…., ou mais que… alguém. Ameaçar uma criança com a retirada do amor dos adultos significativos para ela, corresponde a retirar o valor que ela tem, ou , em outras palavras, consiste em dizer que ela não têm um valor intrínseco, mas sim relativo e dependendo daquilo que ela fizer e de como o fizer.
Penso que uma das tarefas mais difíceis na educação infantil seja colocar limites nos filhos sem, entretanto, chantageá-los com a retirada deste valor intrínseco.
Mesmo porque, a maior parte dos pais foi educada desta mesma forma por seus próprios pais e considera este jeito de se comunicar com a criança, natural e inofensivo. Se pensarmos num adolescente freqüentemente ameaçado de perder seu divertimento predileto se não tirar notas altas, veremos como o valor abstrato de outrora, se transforma com o tempo em objetos concretos, bens materiais, dinheiro, que são dados e retirados , desde que o outro faça isto ou aquilo.
Toda vez que uma criança sente que não tem valor para os pais ela se sente envergonhada e inferiorizada por isso. O “Eu “se ama e se respeita quando se percebe amado e respeitado. Por outro lado , o” Eu ” se odeia quando intui que está sendo rejeitado ou deixado de lado. Muitos anos de educação sob este sistema de manipulação do outro através da atribuição e retirada de valor , acabam gerando adultos que , tal qual a Pac.. B, sobrevivem com um senso de valor próprio defeituoso . São pessoas que ora se subestimam ora se superestimam, tornando – se ou excessivamente dependentes do outro, sem a autonomia da vida adulta, ou excessivamente independentes do outro ( do tipo que não precisa de ninguém).
Uma criança é vulnerável, devassável,ou seja, não têm um sistema de defesas (fronteiras) desenvolvido e dependem dos pais para protegê-la. Esta falta de limites entre o “Eu” e o “Outro” faz com que as crianças sejam normalmente egocêntricas e se sintam misturadas com tudo à sua volta, explicando o mundo baseadas em si mesmas. Ex.: se meus pais brigam, a culpa é minha, se eles não ficam comigo deve ser porque eu sou ruim; se eles trabalham demais e nunca estão comigo é porque eu valho menos do que o trabalho deles. Os pais têm uma dupla e árdua tarefa que é reconhecer e respeitar o direito que os filhos têm de serem donos de seus próprios corpos, pensamentos, sentimentos e comportamento e, ao mesmo tempo, guiá-los em direção a uma percepção mais realista e funcional do mundo, limitando seu egocentrismo.A frustração gradual de algumas necessidades da criança, faz com que ela perceba que o outro não é parte intrínseca dela. Por outro lado, toda vez que fica frustrada a criança responde com irritação, birra e desagrado. Isto é normal e os pais precisam aceitar estes impulsos agressivos , sem se deixarem pessoalmente destruir por eles. A expressão da emoção é uma necessidade fisiológica do organismo em busca de uma homeostase que foi perdida. Se a emoção não é expressa ela retroflete, voltando-se para o EU da criança. Assim a raiva, por exemplo, que não pode ser dita acaba se voltando para o próprio Eu e gerando sintomas e atitudes destrutivas.
Alguns pais não toleram os impulsos e as emoções das crianças. Na realidade, quando as emoções são muito fortes, os adultos temem perder o controle da criança e tratam de limitá-la. Ninguém agüenta uma criança furiosa, ou mesmo uma criança excessivamente feliz. Elas fazem muito barulho, ficam muito excitadas e nos perturbam. Muitos pais punem de forma exagerada ( Pac. . C) , ou com a ameaça de retirada do amor, como vimos antes.
Freqüentemente encontramos pacientes que desde cedo desistiram de contrariar os pais e, começaram a querer agradá-los, cuidando para que eles não ficassem excessivamente irritados, ou deprimidos (pac.D.). Há uma inversão de dependências, a criança fica com o poder de definir a situação e aprende que é do humor dela que depende o dos pais , e não vice-versa. Estas são as crianças boazinhas, as auxiliares dos pais , que põe a sua sensibilidade e empatia a serviço dos demais e, segundo , Alice Miller (1979) aquelas que tem boa chance de se tornarem a psicoterapeutas um dia.
A independência dos pais e o fato deles próprios terem limites bem estabelecidos auxiliam a criança a se separar dos pais e ter uma representação interna adequada de si e do outro. Quando isto não ocorre , possivelmente sobrevive um adulto que ou não sabe se proteger adequadamente nos relacionamentos ou não consegue ele mesmo se conter, para não ser ofensivo aos demais ( pac.A). Ainda é possível pensarmos no tipo oscilante que ora se apresenta extremamente invulnerável , ora mostra uma vulnerabilidade extrema.
Crianças são imaturas, imperfeitas – elas são descoordenadas, deixam cair coisas, quebram objetos, caem, se sujam, fazem barulho, colocam o dedo no nariz, brigam no carro atrapalhando os pais que dirigem, pedem para ir no banheiro nos momentos mais complicados, etc. Enfim crianças agem como criançaspois além da falta de coordenação, motora, elas carecem de falta de conhecimento sobre seus limites, como agir diante de dificuldades, etc.Em muitas famílias disfuncionais , aonde os adultos se colocam como deuses que administram a perfeição ( nunca erram e se o fazem jamais admitem ou pedem desculpas) as crianças são punidas severamente e envergonhadas por cometerem erros normais. Espera-se que a ela seja mais adulta do que é, como se tivesse nascido com uma manual de informações sobre a vida. ( Pac.A)
Eu tenho uma paciente que se lembra de horas e horas de medo dentro de um quarto escuro, mas não é capaz de lembrar qual foi a coisa errada que cometeu, portanto , seja lá o que a mãe queria lhe ensinar com o castigo, este aprendizado não ocorreu. Sob medo, vergonha , sensação de inferioridade e desvalia o único aprendizado que pode ser introjetado é o de que não valemos nada enquanto seres humanos ( Pac .A,B,C,).
Muitas informações são necessárias para que uma criança entenda como é a vida, e ela aprende por ensaio e erro, e/ou através daquilo que os adultos ensinam , mas e sobretudo, através de como os adultos agem eles mesmos. Sabemos hoje que crianças criadas com excessiva intransigência costumam se amoldar à expectativa tornando-se, mais tarde, adultos perfeccionistas e controladores ; poderão também tornar-se adultos profundamente inseguros , que sofrem demasiadamente quando erram e que tem medo de avaliações ; ou ainda poderão se rebelar, recusando-se a cooperar e até trabalhando para serem o contrário daquilo que lhe pedem. Estes são os rebeldes e as crianças ruins e problemáticas da casa.
Costumo dizer aos meus pacientes, brincando: -“Faça o que você está querendo, mesmo que sua mãe concorde!”, aludindo a este mecanismo de ir contra , pois o que percebo é que muitos adultos não seguem nem mesmo as normas que eles colocam para si , sendo incapazes de qualquer disciplina.
Uma outra forma inadequada de lidar com a imperfeição infantil é ignorá-la, fazendo com que as crianças acabem nunca aprendendo que seu comportamento aborrece ou perturba outras pessoas. Assim também se criam pessoas que serão consideradas inoportunas e chatas pela sociedade, simplesmente porque não têm consciência de que seu comportamento é abusivo e perturba o outro.
Finalmente penso que um dos aprendizados mais preciosos que se pode dar às crianças seja mostrar que, de vez em quando, todos, inclusive seus pais, cometem enganos e que, quase sempre, existe possibilidade de reparação do erro, ou no mínimo, de um pedido de desculpas.
O pensamento da criança é concreto e radical – a criança não discrimina nuâncias entre as qualidades das pessoas e objetos. Sua concretude de pensamento faz com que ela pense de forma polarizada e extremada: ou é bom ou ruim, é tudo ou nada, agora ou nunca, etc. Os guestalterapeutas (Perls, F.,1973 :46-48) descrevem outra peculiaridade da mente infantil que é a de assimilar introjetos, pedaços inteiros de idéias , como se não mastigasse ao engolir. Piaget ( 1926: 54-74), por seu turno, nos mostra que só a partir de 8 anos as crianças começam a poder entender experiências separadas e assimilar diferenças. As crianças muito pequenas acham que aquilo que se diz delas, é elas, por isso se incomodam tanto com as gozações.
Pois bem, diante destas quatro características da criança normal: valorabilidade, vulnerabilidade, imperfeição e pensamento radical , podemos inferir o que significa necessidade de dependência básica do ser humano. Significa poder contar com pais que :
1- façam ela se sentir preciosa , importante e providenciem o que necessita enquanto não for autônoma.
2- dediquem tempo e atenção para poder ajudá-la a definir seus próprios limites e a obter as informações que precisa para lidar com a realidade e com suas próprias necessidades;
3-permitam que a criança expresse seus impulsos agressivos e hostis sem se destruírem e sem destruírem a auto-estima da criança; ao mesmo tempo também se permitam a expressão de reações agressivas e hostis, respeitando a assimetria intrínseca do vínculo.
5-permitam que a criança seja criança , depois que ela cresça e ganhe autonomia;
6-sejam pessoas coerentes, consistentes, previsíveis que ensinem e ajam da mesma forma;
7- sejam seres falíveis, que admitam seus erros e peça desculpas.
Sei que vocês devem estar achando que sou extremamente exigente , que estes pais ideais são tudo menos humanos e que ¼ das características descritas já são suficientes para uma criança crescer razoavelmente normal. Concordo com esta observação, mas tenho percebido que a cada desconto que se dá aos pais, se conta um ponto numa lista enorme de abusos infantis, e que crianças submetidas a qualquer tipo de abuso ou negligência destas necessidades básicas de dependência, crescem apenas na aparência física e social, emocionalmente continuam de alguma forma, humilhadas, órfãs e envergonhadas toxicamente, reivindicando aquilo que não tiveram, tentando, a qualquer preço reparar sua auto-estima, sua dignidade, seu narcisismo ferido.
ABUSO INFANTIL – NÃO É UM EXAGERO CHAMAR FATOS TÃO CORRIQUEIROS DE ABUSO?
Os estudos ( Kreisman, J., 1989; Bradshaw, A ., 1988;1990) sobre personalidade narcísicas borderlines e codependência ampliam o conceito de abuso infantil, outrora quase limitado a eventos extremos, tais como abuso sexual. Atualmente considera-se que os pais abusam da criança toda a vez que não respeitam a hierarquia da relação pais-filhos, ou seja, sempre que não protegem a criança e não a ajudam a se desenvolver.
O vínculo pais-filho, pressupõe uma hierarquia na qual duas pessoas adultas, resolvem ter uma criança pela qual serão responsáveis até crescer. Existe uma legislação que rege esta relação, atualmente sendo revista nos EUA. Quero rapidamente listar algumas formas de abuso infantil:
- ABUSO SEXUAL- é o abuso que mais envergonha, é mais freqüente do que se imagina e envolve a família inteira. Envolve não só o fato de um ou ambos os pais obrigarem a criança a manter relações sexuais físicas com ele(s), mas também formas sutis de ultraje, tais como:
- Intimidar sexualmente – criar situações aonde acriança vê ou ouve coisas que não quer , não pode entender, ou que a envergonham. É o caso de crianças que por “descuido” dos pais , ouvem ou observam suas relações sexuais, ou ainda o caso de adultos voyeristas e/ou exibicionistas que observam sexualmente os filhos e/ou se desnudam de forma sexual para as crianças admirarem . Pia Mellody ( 1989), acredita que ocorre abuso sexual toda a vez que um pai tem um relacionamento com um de seus filhos que é mais importante do que o relacionamento que ele tem com o cônjuge. Ela alude ao fato de que crianças precisam de pais, não de maridos, esposas ou admiradores, e ao fato de que muitos adultos deixam claro que admiram os corpos de seus filhos, que adorariam ter uma outra idade para poder namorá-los, ou que eles são melhores, mais bonitos, espertos ou capazes que o cônjuge.
- Cuidados físicos , por exemplo o uso de enemas, dar banho em crianças mais velhas, podem ser uma forma de abuso sexual disfarçado. Tive uma paciente que secava a vagina da filha para evitar assaduras até a menina ter 10 anos, e só parou de fazê-lo depois da terapia.
- Ausência de informação sexual adequada à idade, por exemplo, não falar a uma menina que ela irá menstruar , dizerque a masturbação causa lesões físicas, etc. As crianças , sobretudo as muito pequenas, nem sempre sabem quando os adultos têm uma intenção sexual. Mas invariavelmente acabam descobrindo e se sentindo envergonhadas, lesadas em sua auto-estima e ,por não conhecerem bem o fenômeno sexual e terem um pensamento radical , imaginam conseqüências terríveis para seu futuro, passando a se sentir fadadas a um destino trágico dali para a frente.
- ABUSO FISICO- Qualquer tipo de punição física – bater, espancar, puxar cabelos, beliscar, trancar no quarto escuro, etc – à criança ou a alguém da família tendo a criança como observadora. Kreisman, J. (1989) mostra que pais que batem em seus filhos apanharam eles mesmos enquanto crianças.( Pac.A e C)
- ABUSO EMOCIONAL– resulta de uma confusão de fronteiras dentro da família e a uma reversão da ordem da natureza: são as crianças que cuidam de seus pais e não o contrário. Não é só o caso de filhos de alcoólatras, depressivos graves, etc, mas ocorre na maior parte das famílias ditas “normais”. Uma ou mais crianças da família são especialmente estimuladas para serem as auxiliares da mamãe ou do papai, muitas vezes porque este adulto que pede ajuda é , ele mesmo, frágil e não consegue se defender de alguma situação abusiva intra-familiar. A criança assume este papel especial não porque realmente queira mas para ajudar os pais de quem depende e/ou para assegurar o seu amor que pode ser perdido se contrariá-los , enfim para evitar a solidão e o abandono. Paradoxalmente, esta criança eficientemente adulta, acaba possuindo dentro de si uma criança abandonada e magoada, pois enquanto cuidava tão bem dos pais, suas próprias necessidades infantis não foram satisfeitas nem respeitadas. ( Pac.C) . Outra forma de abuso emocional é desrespeitar a vontade da criança, impondo-lhe o desejo dos pais e não levando o dela em consideração. Por exemplo, fazer a criança comer o que não quer, vestir a roupa que odeia, etc.
Para concluir, uma criança que não tem suas necessidades de dependência respeitadas e satisfeitas sofre um grave dano em sua identidade básica, passa a desacreditar das próprias necessidades, julgando-as ilegítimas e o próprio desejo fica significado como vergonhoso. Seu egocentrismo infantil somado ao fato de precisar manter a idealização dos adultos de quem depende para sobreviver, faz com que ela, freqüentemente, se atribua alguma culpa pela atitude dos pais, do tipo: ” Eu é que sou ruim! Fui má! Sou burra! Tenho algum defeito grave, etc”. Esta atribuição acaba, com o tempo, virando um traço da identidade da pessoa.
Uma vez que o abuso é um tópico de segredo na família , a criança julga que é a única do mundo que vive aquela situação, portanto ela, realmente deve valer menos do que as outras crianças. Nestas circunstâncias também, a criança fica, completamente abandonada, órfã e solitária, porque na hora em que o abuso ou negligência acontece, não há ninguém para defendê-la. Conclui daí que jamais haverá alguém com quem possa contar, pois se seus próprios pais não foram confiáveis, quem mais o será?
COMO SOBREVIVEMOS ENTÃO?
Em todas as formas de abuso os adultos ou extrapolam seus poderes sobre a criança, empreendendo ações violentadoras contra ela ou se des- responsabilizam de cuidá-la e protegê-la.
Freud (1905: 2508-2541) foi quem primeiramente descobriu que existem processos automáticos usados pelo ego para se auto – preservar cada vez que sofre um choque severo, mas foi Anna Freud ( 1973) em “Ego e seus Mecanismos de Defesa” quem definitivamente introduziu a questão das defesas do psiquismo no nosso pensamento clínico contemporâneo. Estas defesas são formas que a natureza humana tem de proteger o psiquismo da criança de situações realmente intoleráveis, até que ela tenha fronteiras egóicas melhor definidas, e saiba separar o que é seu daquilo que é do outro. Citarei apenas alguns destes mecanismos: negação, repressão, dissociação, des- personalização, identificação com o agressor, conversão, etc.
Na realidade o “EU” ultrajado da criança não escolhe um ou outro destes mecanismos para se defender. Ele usa vários deles alternadamente ou ao mesmo tempo, para formar um sistema de defesa, o mais eficiente possível e que Winnicot (1982) brilhantemente definiu como o sistema do Falso Self.
FALSO SELF – NOSSO ADULTO BEM SUCEDIDO
Nesta tentativa desesperada de esconder de si mesma a realidade do abandono e desvalia em que vive, a criança nega ou substitui suas próprias emoções, criando uma forma alternativa de ser, que supõe ser melhor valorizada pelas pessoas com quem vive e que não tenha aquelas características vergonhosas e defeituosas de antes. Este ser superior rejeita o verdadeiro, freqüentemente de forma tão ou mais cruel que os pais da criança. este é o sistema do falso self que possui as seguintes características:
- é sempre mais que humano ou menos que humano, perfeccionista ou estúpido, vítima, herói da família ou bode-espiatório, etc. Isto porque as emoções que a defesa vem suprimir são emoções humanas. Sem elas a pessoa se torna algo irreal, como um personagem de livro, por exemplo. Os papéis jogados são , em geral, complementares patológicos que a família necessita . Há sempre critérios polares envolvidos, critérios que seguem a forma radical e absolutista da criança pensar.
- A vergonha e o desamparo infantis são as motivações básicas para a criação de qualquer uma destas polaridades.
- Tão logo ele se estruture, o verdadeiro selfcomeça a ser soterrado , esquecido. Com o tempo a pessoa perde a consciência de quem realmente era, bem como a lembrança e que criou um personagem para si mesma.
- A função do falso self é dupla: enquanto protege a criança abusada e negligenciada, tenta, ao mesmo tempo, conseguirsatisfação para algumas daquelas necessidades negligenciadas, que a própria criança tratou de negar. Por exemplo, uma criança pode obter atenção se machucando, ficando doente, não comendo, ou sendo a melhor aluna da classe.
- As partes reprimidas e negadas do ego são projetadas nos relacionamentos e constituem a base de muitos ódios e preconceitos. Estas partes projetadas podem ser experimentadas como uma cisão de personalidade ou personalidades múltiplas ( comum em casos de violência física e sexual), gerando uma sensação de irrealidade, de depressão crônica , pela perda de uma parte de si.
- Acompanha o falso self também , um sistema deauto-observação e vigilância constantes, porque é preciso cuidar para que as partes rejeitadas não apareçam e nos façam sentir vergonha e inferioridade. Trata-se de uma autoconsciência tortuosa, que tem um efeito paralisador internamente.
ASPECTO MULTIGERACIONAL-CONTÁGIO PSICOLÓGICO
Os pais freqüentemente justificam suas atitudes em relação aos filhos dizendo que estão fazendo o melhor que podem por eles e que acreditam ser esta a melhor forma de educá-los. Sinceramente não acho que todos os pais estejam mentindo, talvez alguns sim, mas não todos.
De fato sabemos hoje que a interpretação daquilo que vem a ser educação infantil, depende menos de normas que os psicólogos ou educadores estabelecem como saudáveis e desejáveis, e mais da estrutura emocional dos pais e do jeito como eles próprios foram educados.
Este é o fenômeno que chamei de “Contágio Psicológico” , Freud chamava de ” Compulsão à Repetição” ( 1905:2508-2541) . É um processo complexo, inconsciente, aonde ainda como adultos, buscamos a satisfação das nossas necessidades infantis e o resgate de nossa dignidade ferida.
Nossos filhos e suas atitudes infantis são sentidos, por nossas crianças internas feridas como os algozes que nos submetem e obrigam a fazer coisas que não queremos. Por isso nós os punimos. Enquanto crianças não podíamos nos defender ou melhor podíamos, mas com táticas infantis de defesa *. São estas táticas aliás , ineficientes contra os adultos que nos violentaram, que repetimos contra nossas crianças, perpetuando multigeracionalmente e intrafamiliarmente estas características abusivas.**
Este é o disco quebrado que roda sempre no mesmo lugar. Alguém tem que ir lá e cuidadosamente tirar a agulha da parte riscada, mostrar ao paciente que aquele dano pode talvez até ter algum reparo, ser remendado ou coberto, mas não pode deixar de existir. Por outro lado o futuro está cheio de discos que potencialmente ainda podem ser tocados se a agulha for tirada a tempo e não se danificar.
COMO O PSICODRAMA PODE AJUDAR ESTAS CRIANÇAS-FANTASMAS SOTERRADAS DENTRO DE NÓS, E PREVENIR QUE CONTAMINEMOS COM NOSSO RESSENTIMENTO , AS PESSOAS QUE NOS SÃO MAIS CARAS E ÍNTIMAS?
O psicodrama tem representado, para a minha vida, a melhor assistência técnica para discos rasurados que jamais obtive em lugar algum.
Acredito que o psiquismo humano se estruture em torno de uma economia narcísica , ou seja , desde o dia que nascemos até provavelmente a nossa morte, buscaremos determinar quem somos e qual é o “nosso valor” para os outros e para nós mesmos; nossos critérios de valor se modificam ou não com o passar do tempo, mas seremos sempre pessoas que buscam seu valor.
Esta é, para mim, a parte intangível do eu a que está aquém do papel, e não tenho a mesma certeza que Moreno** ( 1992:185) sobre qual das duas partes surge antes e cria a outra. Acho que esta busca de valor intrínseco é parte da natureza humana, mas disto falarei em outro momento.
O drama da criança ferida que muitos de nós mantêm dentro de si, fala de um momento na vida, no qual nosso narcisismo foi fragilizado e nosso psiquismo se mobilizou então, com toda a sua espontaneidade, para reparar o dano cometido. Criamos um antibiótico específico para o mal que nos acometia e o conservamos, feito pedra preciosa, pensando em usá-lo cada vez que outra ameaça à nossa auto-estima aparecesse pelo caminho.
Só que como toda a conserva, o antibiótico perdeu sua validade e alguém precisa convencer nossa criança machucada que seu remédio está velho e que ela tem que jogá-lo fora. Na realidade ela já sabe disso, por isso buscou a terapia, só que não conhece ou não sabe utilizar outros remédios, então usa o velho mesmo. Falar apenas não adianta.
Penso que não há nada mais sedutor para uma criança, mesmo uma criança doente e deprimida, do que lhe dar um brinquedo novo ou propor-lhe uma brincadeira inusitada. Sei disso porque trabalhei*** numa enfermaria de crianças com doenças terminais durante algum tempo, e elas brincavam comigo. O “como se” do jogo descentra nossa identidade básica e, por algum tempo, podemos esquecer quem somos, quais são nossas dores , quais injúrias sofremos e como temos que nos prevenir para que elas não mais aconteçam.
Além disso no jogo posso ser quem eu quiser, de um princesa florida a um Hitler raivoso. Seja lá quem eu escolher ser, fato é que, por alguns segundos, deixo de ser eu mesma.
Para mim, uma das grandes forças terapêuticas do psicodrama reside exatamente em, através de um aquecimento elaborado, propor técnicas que descomprometam o sujeito de sua identidade básica, permitindo que ele veja além dos seus próprios olhos cegos por seus remédios infantis. No papel do outro posso ver e falar coisas de mim que no meu próprio eu não poderia. Além disso “o como se” dá concretude a situações , afetos e personalidades, que de outra forma seriam meras idéias abstratas, sem corporeidade suficiente para envolver ninguém. Por exemplo , através do psicodrama podemos caracterizar e concretizar a criança interna, conversar com ela, trocar de papel, etc.
Através da dramatização em cena aberta ou do psicodrama interno, utilizando todas as técnicas clássicas e seguindo a cadeia transferencial de associações do paciente ( Perazzo, S., 1987) *, tenho achado relativamente fácil trazer à tona esta dramática infantil. Minha experiência tem me mostrado que a terapia propriamente dita só se inicia, quando esta criança passa a ser repetidamente identificada pelo paciente e quando ele começa a levá-la a sério. Ele deixa então de culpar os outros pelos seus problemas e começa a assumir a responsabilidade por suas dificuldades.
No palco , o drama que começa a ser montado já não é tão freqüentemente entre o paciente e seu átomo – social, mas dele com partes suas, personagens fragmentados, portadores cada um, de uma parte de seu sistema de defesa infantil.
Meu maior problema atualmente é auxiliar o paciente a fazer acordos com sua criança interna magoada, pois como toda a criança, esta é teimosa, birrenta e não negocia enquanto não receber o que quer. Só que ninguém pode lhe dar exatamente aquilo que ela quer, o passado não volta. O paciente adulto tem que, a duras penas, e feito um pai tolerante e persistente, auxiliar suas partes infantis a lidar com a frustração, fazer acordos, raciocinar de forma menos extremadas e expressar seu desagrado de um jeito não furioso. Isto é o que entendo por re-matrizar, e o que para mim Moreno (1992:153) quer dizer quando define espontaneidade como “força propulsora do indivíduo em direção à resposta adequada à nova situação ou à resposta nova para a situação já conhecida”.
Tenho inventado jogos, formas de confronto adulto – criança, pedido ao paciente escrever cartas para sua criança interna, estimulado jogos de papéis , criação de metáforas, assimilo técnicas de outras abordagens, em psicoterapia de grupo proponho encontros entre todas as crianças magoadas dos pacientes…., enfim, adoro buscar formas novas de ajudar os pessoas nesta tarefa.
Porém o que definitivamente sei que funciona é oferecer, através da relação paciente-terapeuta , o respeito e aceitação, a constância e o compromisso , além da capacidade de emoção do terapeuta para com o drama real do paciente. Estas são poções mágicas e Moreno era mestre nelas. É neste encontro existencial que sou 100% moreniana.
Zerca Moreno ( Cukier, R., 1994) quando esteve entre nós o ano passado, começou a sua fala dizendo que dentro de todos nós habitava uma criança ferida e que considerava uma questão profilática e de saúde pública a criação, urgente, de escolas para pais.
Exultei ao ouvi-la e pensei comigo mesma:” será que Moreno concordaria com isto , se estivesse vivo ?
Nunca vou ter esta resposta, mas sim saberei o que vocês, que representam para mim o movimento psicodramático moderno pensam. Aguardo então a sua resposta.
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Perazzo,S. (1987)- Percurso Transferencial e Reparação, Revista Temas, ano XVII, nº 32—33.
* O brilho do olhar materno , segundo Kohut
* O que chamo de táticas infantis de defesa, são todas as descritas por Freud e Ana Freud, além do sistema de Falso Self de Winnicot, vistos pela ótica de uma criança , com as características infantis que descrevi acima.
** Na realidade comportamentos abusivos, autoritários , desconfirmadores, ocorrem em todos os contextos da nossa vida. Eles não são apenas multigeracionais, mas, também, intergeracionais. Moreno ( 1992, pp. 225 ) usa o conceito de proletariado sociométrico para falar dos grupos isolados , negligenciados e rejeitados, cujos sentimentos não encontram reciprocidade. Nós, os humanos, somos especialistas na criação destes ” proletariados sociométricos” , por isso , por exemplo, temos tanto medo de apresentar nossas idéias em congressos.
** “O surgimento do papel é anterior ao surgimento do eu. Os papéis não surgem do eu; este pode porém surgir dos papéis”.
*** Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo, na enfermaria do 4º andar.
* Acho extremamente interessante a conceito que Sergio Perazzo desenvolve sobre elos associativos e cadeia ou percurso transferencial. Eles me ajudam a organizar a dramatização.
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SINOPSE-Moreno , em muitos de seu escritos , menciona a pretensão de tratar a humanidade. A autora, partindo da descrição dos inúmeros conflitos étnicos existentes no mundo moderno, advoga a necessidade de se pensar num trabalho terapêutico, quiçá utilizando o psicodrama, que trabalhe as “emoções grupais”. O orgulho de um povo, quando ofendido, busca incessantemente um ato de vingança que restitua a dignidade perdida, perpetuando multigeracionalmente os ódios de outrora. “Narcisismo grupal, luto e reparação enquanto mecanismo de massa, são alguns dos conceitos discutidos ao longo deste texto.
ABSTRACT- Moreno always mentioned the potential universal utilization of the psychodramatic techniques. The author discusses the urgent need to do so, in order to help many of the ethnic and political conflicts that emerges all over the word. The offended pride of a group will look for revenge during many generations. ” Group Narcissism”; “grupal mourning and reparation” are some of the concepts discussed in this article.
UNITERMOS– Narcisismo grupal, luto e reparação grupais; contaminação multigeracional
UNITERMS-Group Narcissism; grupal mourning and reparation; multigenerational contamination
PALAVRAS DE MORENO NO LIVRO“ QUEM SOBREVIVERÁ?
“ Um procedimento verdadeiramente terapêutico deve ter por objetivo toda a espécie humana “.(1992:119, vol. I)
“ Acredito que a sociometria e o psicodrama terão lugar importante na história da sociologia, escrita no ano 2.000 . (1992: 87, prólogos)
“ Presumimos, talvez ingenuamente que se uma guerra pode espalhar-se pelo globo, deveria ser igualmente possível preparar e propagar uma sociometria mundial. Porém esta visão não surgiu do nada. Uma vez tratada com sucesso, toda uma comunidade, através de métodos sociométricos, pareceu-nos, ao menos teoricamente, possível tratar número infinitamente maior de tais comunidades pelos mesmos métodos– de fato, todas as comunidades que formam a sociedade humana.” (1992: 228-, ,vol. I )
” O experimento sociométrico acabará por tornar-se total, não apenas em expansão e extensão, mas também em intensidade, marcando , assim, o início da sociometria política”.(1992: 228/229 ,vol. I)
A pretensão moreniana de tratar toda a humanidade através do psicodrama sempre me pareceu exagerada e improvável, sonhos utópicos de um homem que além de aspirar importância e reconhecimento maiores do que teve, prognosticava fatos para o distante ano 2000 que jamais testemunharia.Pois bem, acabo de voltar do 13º Congresso Internacional de Psicoterapias de Grupo em Londres. É agosto de 1998, muito perto do ano 2000. Volto pensando diferente, quero rever estas frases de Moreno, leio com atenção. Ouvi coisas neste encontro que , a toda hora, me remetiam a ele e escrevo este artigo para compartilhar com vocês estes meus recentes achados.
Impressionou-me, especialmente, o tema central das “key-notes”[2], grandes palestras com as quais se iniciavam diariamente os trabalhos do congresso. Os expositores, profissionais de muito destaque na produção científica mundial , pertenciam a uma inter – área de interesse que mesclava história, sociologia, antropologia, política e psicologia. Sua grande preocupação era conseguir compreender e conter o aumento das chamadas guerras políticas e étnicas .
O Instituto de Pesquisa pela Paz Internacional de Estocolmo estima que o número de Conflitos Armados Maiores [3] se manteve estável desde 1986 — em torno de 30 em 25 localidades — embora tenham crescido sua intensidade e periculosidade. O que aumentou assustadoramente foi o número de Conflitos Menores, mais conhecidos como Terrorismo Étnico.[4]
A palavra etnia vem do grego “ethnos” que significa companhia, pessoas ou tribo. Depois da Segunda Guerra Mundial , por iniciativa da ONU, adotou-se o termo “ etnia” em substituição ao termo “raça”, devido às conotações de inferioridade ou superioridade biológicas que os nazistas deram a esta palavra.
Porém palavras novas não exorcizam velhos problemas. A civilidade nacional que permitia a pessoas de diferentes culturas dentro de uma mesma nação[5] viverem em paz juntas , foi vencida pelo ódio étnico e milhões de pessoas tem morrido nestes “ confrontos entre vizinhos”.
Na Iugoslávia , por exemplo, estima-se que 65.000 pessoas já tenham morrido; na Bosnia-Herzegovina 55.000 ; na Croácia cerca de 10.000 e em Ruanda as mortes já chegam a um milhão. E quantos será que estão morrendo nos conflitos do Afeganistão, Algéria, Angola, Azerbaijão, Bangladesh, Burundi, Camboja, Colômbia, Geórgia, Guatemala, Índia, Indonésia, Irã, Iraque, Israel, Libéria, Birmânia, Peru, Filipinas, Somália, SriLanka, Sudão, Turquia, Inglaterra e Zaire?
Chama atenção a barbárie destes confrontos onde os direitos humanos são completamente ignorados, o genocídio é um objetivo freqüente e nem mesmo se adotam os códigos de ética das guerras tradicionais. Não mais se fala em “ extermínio de um povo”. Agora “ limpeza étnica” é a palavra de ordem e visa não deixar vivo ninguém que pertença a outra etnia ou que se lembre das terras e casas que possuía. Décio de Freitas ( 1998 ) mostra que muitos dos que guerreiam e se matam podem ser étnicamente semelhantes na história, no sangue , na língua e até na religião. A intolerância se concentra não nas diferenças macroscópicas mas em sutis alianças. A lealdade é para com o pequeno grupo étnico e não para com a grande nação. Clama-se vingança por ofensas passadas; busca-se, transgeracionalmente e a qualquer custo , resgatar a dignidade do próprio povo.
E o que Moreno tem a ver com isso, vocês devem estar se perguntando? Pois bem o velho sonho de tratar a humanidade está em voga na Europa . Pelo menos daquilo que pude extrair dos livros de alguns destes palestristas ilustres.
Por exemplo o psiquiatra turco Vamik Volkan (1997) afirma que a partir destes conflitos todos, criou-se uma demanda crescente para uma modificação do conceito de trabalho diplomático, que agora inclui a dimensão psicológica dos eventos e não apenas o caráter econômico e social dos mesmos.
A maior parte dos conflitos étnicos envolve questões complexas ligadas à identidade dos grandes grupos envolvidos e não pode ser negociada apenas pela diplomacia política. Tampouco funciona nestas questões a diplomacia internacional tradicional, pois não se trata de dois povos distintos lutando, mas de lutas dentro de um mesmo povo. Donald Horowitz ( Volkan, 1997) , cientista político, defende a idéia de que a quantidade de paixão expressa nos conflitos étnicos demanda uma explicação que leve em conta as emoções.
IDENTIDADE DE GRANDES GRUPOS
Os seres humanos sempre viveram em grupos emocionalmente ligados, tais como clãs ou tribos. ‘Grupo Étnico” é o nome contemporâneo para este fenômeno e define um conjunto de pessoas que possuem em comum : lugar de origem, ancestrais, tradições, crenças religiosas e linguagem. Além destas características , as pessoas de uma mesma etnia compartilham também um mito de inauguração, espécie de história grandiosa sobre o início do grupo, que inclui um conceito de continuidade bio-genética generacional e confere características especiais e únicas para este grupo, tornando-o diferente de todos os demais.
A percepção da própria tribo ou grupo como humana e superior a outras , vistas como sub-humanas , é um fenômeno universal que intriga os antropólogos. Os chineses antigos, por exemplo, chamavam-se a si mesmos de pessoas e às outras raças de Kuei, espíritos caçadores. Os apaches americanos chamam-se a si mesmos de indeh (pessoas) e os outros de indah ( inimigos). Em inglês o termo bárbaro refere-se a estrangeiro.
Inicialmente as tribos vizinhas competiam por itens necessários à sobrevivência tais como comida e água. Com o tempo, e assim que a sobrevivência se vê assegurada, outros itens começam a ser alvos da competição, itens supérfluos tais como peles e bens materiais, mas que engrandecem a auto-estima de quem os possui e passam a representar símbolos de poder. Estes símbolos por sua vez, ganham cores , bandeiras, músicas e outros indicadores culturais da identidade compartilhada e da estória mítica do grupo.
A etnicidade[6]é um aspecto da identidade pessoal ; ela é uma identidade social, não biológica e vai além de considerações genéticas . Sua peculiaridade maior é de apenas ser sentida quando um grupo interage com outro, como se fosse uma possibilidade em potencial que só se manifesta em circunstâncias de interação com o diferente. Um certo grau de etnocentrismo é comum e saudável em todos os grupos mas, perigosamente, pode desandar para um tipo de racismo.
PERSONALIDADE E PSICODINÂMICA DOS GRUPOS ÉTNICOS
Muito pouco sabemos ainda sobre o funcionamento de grandes grupos. Freud ( 1920: 2563-2610) fez algumas tentativas de estudar os fenômenos grupais e antes dele autores como o sociólogo francês Gustavo Le Bonn ( Freud, 1920) e o americano Mac Dougall (Freud, 1920) também tentaram algumas explicações. Eles constataram que quando o indivíduo está num grupo perde, , sua identidade habitual , havendo um incremento da emocionalidade e sugestionabilidade e um decréscimo da parte intelectual e cognitiva.
Freud atribuiu estes fenômenos à libido que seria a responsável pela formação e manutenção dos vínculos de amor num grupo. Para ele a mente grupal seria estruturada de forma semelhante aos padrões da família ; o amor entre os membros do grupo e a capacidade de se influenciarem mutuamente seriam proporcionais ao amor e respeito conquistado pelo líder desta família. Quanto às hostilidades entre os membros elas são atribuídas à má resolução das questões edípicas.
Volkan acredita que esta explicação esteja incompleta e pouco esclarece a questão da agressividade presente nas relações humanas e porque um forte sentimento de identidade grupal leva às vezes a atos brutais de violência . Segundo ele, o próprio Freud foi cauteloso em aplicar suas descobertas da psicologia individual ao funcionamento grupal. Em 1932 Albert Einstein , num artigo chamado “Porque a Guerra?” perguntou a Freud se havia alguma forma de se evitar as guerras . Freud se mostrou pessimista e disse que não há formas de eliminar a inclinação agressiva do ser humano. Muito outros psicanalistas têm feito contribuições para a psicologia de grandes grupos, sem chegar entretanto a explicações mais abrangentes e satisfatórias.
Por sorte, novos esforços tem sido feitos contemporaneamente. Em 1978 o presidente do Egito Anwar el –Sadat fez um convite indireto aos profissionais de saúde mental para trabalharem juntamente com diplomatas, buscando compreender e desfazer a barreira psicológica que , segundo ele, constituía 70% do problema Arabi-Israeli. Foi obtida uma verba junto ao Fundo das Nações Unidas e constituído um pequeno comitê , dentro da Associação Americana de Psiquiatria , que realizou reuniões em vários locais da Europa. De 1980 a 1986 , psiquiatras e diplomatas americanos , israelenses, palestinos e egípcios dividiram-se e participaram de pequenos sub- grupos de discussão, visando facilitar o diálogo entre as partes em litígio. Este trabalho trouxe insights novos e valiosos sobre o comportamento e a identidade de grandes grupos emocionalmente conectados.
LUTOS CULTURAIS NÃO RESOLVIDOS E TRANSMISSÃO TRANSGERACIONAL
As perdas vividas por uma cultura inteira, tais como , assassinato de líderes amados, catástrofes naturais que redundam em elevado número de mortes, domínio, aprisionamento e humilhação de um grupo étnico por outro, etc. , também demandam um processo de luto e elaboração sob pena de se tornarem perenes, caso este procedimento não seja levado a efeito com sucesso.
A cultura comunica sua dor de formas peculiares. Usa, por exemplo, os meios de comunicação de massa para reportar o ocorrido ou criar anedotas como forma de elaborar a tragédia; executa ritos culturais para comemorar os aniversários destes eventos traumáticos ; constrói, freqüentemente , monumentos de pedra e metal resistente para simbolizar a força com que determinados fatos jamais serão esquecidos. Quando todo uma geração é dizimada , submetida e impedida de chorar e ritualizar sua perda, , como no caso do holocausto na 2º Guerra Mundial ou dos índios Navajo, expulsos de suas terras pelos colonizadores americanos em 1864, aqueles que sobrevivem á tragédia são encarregados de transmitir seus sentimentos aos descendentes, como se as gerações posteriores pudessem se encarregar do trabalho de luto e elaboração impossibilitado aos seus antepassados.
De certa forma nada fica esquecido na cultura. Analogicamente, poderíamos falar de um inconsciente coletivo no estilo junguiano[7], ou de um co-inconsciente [8], lembrando Moreno ou ainda de estresse pós-traumático[9]¾ enfim , mecanismos de grupo que se encarregariam de represar e transmitir transgeracionalmente , de forma ainda desconhecida da ciência, os ressentimentos , traumas e injustiças sofridos numa determinada geração.
Anne Ancelin Schutzemberger (1997) mostra numerosos exemplos clínicos do que chama de “ síndrome de aniversário” , onde numa mesma família, um determinado fato trágico, por exemplo, um acidente que redunda em morte, se repete por várias gerações sempre na mesma data. Interessante também seu relato dos “ segredos familiares” que retornam encriptados em determinado paciente eleito de uma geração posterior, que, com seus sintomas , relata o que era indizível e impensável anteriormente.
Ivan Boszormenyi-Nagy ( 1983) introduz o conceito brilhante de “ lealdade invisível” , advogando que as relações familiares e culturais incluem a dimensão da justiça e da equidade dentro da família e da cultura. Sintomas e repetições seriam formas desesperadas de buscar o restabelecimento de uma ética das relações transgeracionais.
Deste autor tambémadvém o conceito de “parentificação”, processo de inversão de dependências, passando os filhos a cuidar dos pais, através de um implícito e complexo sistema de contabilização de méritos e dívidas , onde tudo o que se recebeu de cuidados, carinho, cumplicidade deve ser devolvido com o tempo. As injustiças sofridas pela família também fazem parte desta contabilidade e cada membro carrega o encargo de , a seu modo , vingar , esquecer, cobrar estas injustiças. Não há jeito de escapar destas obrigações familiares sem carregar consigo uma sentimento de “culpabilidade existencial amorfa e indefinível”
Interessante perceber também que apesar da palavra lealdade derivar do latim “legalitas”, referente à lei, seu sentido real se refere a uma trama invisível de expectativas familiares, que nem sempre manifesta justiça ou legalidade. Os indivíduos que não aprenderam o sentido de justiça dentro das relações familiares tenderão a desenvolver um critério distorcido de justiça social.
NARCISISMO , RESSENTIMENTO, VINGANÇA E FÚRIA GRUPAIS
Será que poderíamos considerar a existência de um sistema narcísico grupal , através do qual a consciência de valor individual estaria conectada com o valor do grupo ao qual se pertence e, por decorrência, ataques à auto-estima deste grupo estimulariam respostas de fúria e vingança, com o objetivo de resgatar a dignidade perdida ? Sabemos que isto é verdade a nível individual. Eu mesma ( Cukier, 1998) afirmei anteriormente que “crianças abusadas na infância são bombas-relógio para o futuro”, pois tratarão de revidar os abusos quando tiverem o poder nas mãos.
Parece que em relação a grandes grupos vários fatores devem ocorrer paralelamente para culminarem numa reação de fúria vingativa. A presença de um líder fanático, por exemplo, ele mesmo com uma estória infantil de abusos e negligência, é um destes fatores. Alice Miller (1993) mostra , com muita propriedade , que por trás de todas as grandes catástrofes da humanidade houveram líderes sádicos, machucados narcísicamente por pais negligentes e abusivos que não souberam administrar suas necessidades básicas. É o caso de Adolf Hitler, Stalin e Nicolae Ceausescu — ditador da Romênia , que foram covardemente espancados e humilhados na infância.
Outra variável predisponente é ocorrer ou ter ocorrido num passado lembrado ainda, um ataque ao “orgulho do grupo ” . Segundo Kohut (1988) a coesão grupal , se dá tanto através de ideais como através de uma grandiosidade compartilhada e os grupos apresentam transformações regressivas no domínio narcísico sempre que esta grandiosidade for atacada. Estas transformações regressivas do narcisismo grupal implicam em agressão , raiva, fúria e vingança narcísicas.
Há também fatores enraizados na própria cultura, que favorecem reações agressivas como , por exemplo, os sintomas de auto – repudio ou vergonha.. Ë o caso dos nipônicos que desdenham os traços fisionômicos da própria raça e se submetem a cirurgias plásticas para mudança da dobra ocular , desejando possuir características dos grupos majoritários , econômica e culturalmente dominantes.
Hugo Bleichmar ( 1987) chama de “possessões narcísicas do ego “ a estes objetos ou traços identificatórios que se quer possuir para que nos confiram seu valor intrínseco, por exemplo, carros , jóias, olhos, etc. Mostra também, como a cultura oferece vários termos para nomear a realidade, que em seu bojo carregam crenças e atributos identificatórios e valorativos ao sujeito. É o caso dos adjetivos possessivos, no caso da herança genético familiar. Literalmente as palavras —meu, teu, nosso — estabelecem uma ponte entre os objetos e seus possuidores. Ele afirma: “A criança recebe o “meu” com a significação que na palavra dos pais tem“o meu filho”: o narcisismo dos pais requer que o filho-falo seja visto como um produto absoluto deles. Com isso, “o meu filho” significa o filho que por havê-lo criado é minha possessão e, fala, por isso de mim”.
Além disso há regras lógicas no inconsciente individual , por exemplo a lógica da inclusão de classes que equiparam a identidade e o valor de todos os elementos da mesma classe. Entende-se assim porque, apesar das brigas impiedosas dentro de uma mesma família, se alguém alheio ao sistema critica algum de seus membros, por ser este sentido como possessão narcísica do ego , o criticado passa a ser imediatamente defendido pelos demais.
Para Anne Ancelin Schtzemberger (1997) o ressentimento grupal é um fenômeno conectado com a injustiça sofrida pelo grupo ou por algum, de seus membros. O componente da obrigação moral de lealdade faz com que todos os elementos do grupo tenham o dever de buscar a equidade e a justiça, sendo a culpa a penalidade para quem prescindir deste dever.
“Olho por olho, dente por dente”- é esta justiça Taliônica [10] que rege o acerto de contas de nossa sofrida humanidade. No final, acabaremos , provavelmente, todos cegos e desdentados. Será que Moreno pode nos ajudar?
SUGESTÕES MORENIANAS PARA TRATAR A HUMANIDADE
Moreno criou o sociodrama para tratar grupos e problemas coletivos e seu livro “Quem sobreviverá? é totalmente voltado a formular e testar formas de viabilizar este projeto. Define ( 1975:411 e 1992: 80) o sociodrama como :“ um método de ação profunda que investiga e trata as relações intergrupais e as ideologias coletivas”.
Ele fez muitas tentativas de teorizar a respeito do comportamento grupal. Propunha uma diferenciação entre o processo de identidade e de identificação. Diz (1975: 442) : “ A identidade deveria ser considerada à parte do processo de identificação. Desenvolve-se antes deste último na criança pequena e atua em todas as relações intergrupais da sociedade adulta.
Propõe (1975:442) o termo “identidade de papel”, para nomear aquilo que contemporaneamente chamaríamos de identidade étnica: “Os negros consideram a si mesmo um coletivo singular, o negro., uma condição que submerge todas as diferenças individuais,…… A essa identidade chamaremos identidade de papel”.
Várias vezes falou da diferença entre a catarse no sociodrama e a catarse no psicodrama, enfatizando que no sociodrama busca-se tratar as questões referentes à identidade ( 1975 : 424): “ O protagonista no palco não está retratando uma dramatis personae, o fruto criador da mente de um dramaturgo individual, mas uma experiência coletiva. Ele é um ego-auxiliar, é uma extensão emocional de muitos egos. Portanto, numa acepção sociodramática, não é identificação do espectador com o ator que está no palco, presumindo-se a existência de alguma diferença entre aquele e o personagem que este retrata.Trata-se de identidade “.
Moreno ( 1992:130, vol. III ) não tocou na questão do narcisismo grupal mas chegou perto ao admitir que a inveja poderia ser um motor de ressentimento entre grupos. “ …..A população judia na Alemanha pode ter produzido mais líderes individuais do que proporcionalmente seu nível populacional permitiria, ….Como a maioria do grupo era alemã , nós podemos imaginar os sentimentos de ressentimento que surgiam entre os líderes alemães, juntamente com a convicção de que eles tinham um “ direito natural” maior do que os líderes judeus de dirigir essas massa de trabalhadores e fazendeiros alemães”.
Além disso , o próprio teste sociométrico , através dos cálculo das escolhas, rejeições e neutralidades, acaba por atingir em cheio o nó da questão narcísica, provocando reações muitas vezes catastróficas e que Moreno ( 1992: 202. II. vol.) apontou e tentou explicar. Referindo-se aos procedimentos sociométricos , afirma: …estes procedimentos deveriam ser acolhidos favoravelmente já que ajudam no reconhecimento e na compreensão da estrutura básica do grupo. Porém este nãoé sempre o caso. Encontram resistência e até hostilidade por parte de algumas pessoas…..
Moreno sempre se preocupou com os conflitos raciais e chegou até a formular a idéia de um quociente racial (1992: 260 ,II. vol.): “Da interação social dos membros e de sua expansividade emocional resulta uma expressão do grupo, seu ponto de saturação para determinado elemento racial contrastante, seu quociente racial”. Em “O problema Negro – Branco”- um protocolo psicodramático ele ( 1975: 425-452) discute com ousadia a situação do negro nos Estados Unidos e tece considerações teóricas importantes sobre os processos de discriminação racial e as contra-respostas que ele suscita. Também elaborou o conceito de ponto de saturação racial ( 1992:216 vol. III) , aonde expressa a idéia de que existe um determinado ponto além do qual uma população majoritária fica saturada de uma população minoritária, favorecendo os fenômenos de discriminação racial.
Na verdade, desde “As Palavras do Pai” parece ter um firme propósito de , ao invés de arrancar olhos e dentes, como Talião propunha, apenas trocar de olhos e simbolicamente ocupar e compreender o lugar existencial do “outro, inimigo, diferente” . É o que ele faz nesta Oração do Nazista ( 1992: 240), mostrando ser , ele mesmo, capaz de inverter papéis até com inimigos do povo judeu ao qual pertencia:
“O Deus,
nossa raça é como a verde e saudável grama,
As outras raças são como as ervas daninhas, que sufocam a grama,
E para que ela se acabe
Que as arranquemos pela raiz e as destruamos!”
Também a sua conceituação de Axiodrama ( 1992:60), sociodrama focado nas questões de ética e de valor, mostra uma preocupação com o contexto comunitário, na medida em que propõe discutir e dramatizar as assim chamadas “verdades eternas, por exemplo; justiça, beleza, verdade, perfeição, eternidade, paz, etc
Moreno era um homem profundamente conectado ao seu tempo , mas também profundamente crítico às conquistas deste tempo. Ele, por exemplo, desqualificava nossa era super- robotizada , cheia de aparatos técnicos sem vida e espontaneidade , que substituem as relações humanas. Entretanto não hesitou em utilizar esta mesma tecnologia para divulgar seus métodos sociátricos. Fez uso do cinema e , sugeriu, num capítulo escrito junto com John K. Fischel no final de seu livro “Psicodrama”, formas possíveis de se adaptar os métodos de espontaneidade aos recursos da televisão. “ É aconselhável organizar sessões psicodramáticas a serem transmitidas ao mundo desde uma estação de televisão. …… É aconselhável organizar jornais vivos e dramatizados que sejam transmitidos ao mundo através das emissoras de televisão. Isto é mais saudável que o usual noticiário fotográfico de eventos; é um instrumento por meio do qual o gênio vivo e criativo pode, neste planeta, comunicar-se direta e instantaneamente com os seus semelhantes. “( 1975: 482-483).
Ele era contra as bonecas, brinquedos mecânicos, mamadeiras assépticas, enfim contra a tecnologia . Fico entretanto pensando que , se ainda estivesse entre nós, sem dúvida ele acharia uma forma de usar a Internet como fórum de discussões, tribuna livre e , porque não imaginar dramatizações via satélite, onde arque – inimigos pudessem trocar de papel ou descobrir que o medo, a dor, o horror, a solidão, a humilhação, o orgulho……..todos estes são atributos compartilhados por toda a espécie humana e não apenas, por uma especial tribo.
CONCLUSÃO
Eu gostaria de terminar este artigo rendendo homenagens àqueles , dentre nós brasileiros, que têm se empenhado na direção sociátrica moreniana. Me refiro ao crescimento e à criatividade dos vários grupos e escolas de Teatro Espontâneo, grupos que fazem trabalhos sociodramáticos com comunidades rurais e populações carentes, com minorias discriminadas por problemas de saúde e pobreza , além dos serviços comunitários que trabalham com a questão da violência doméstica. Também me encantam as possibilidades de usar o teatro como meio de trabalhar grandes grupos , enfim acho que nós brasileiros , temos algo da ousadia moreniana necessário para levar adiante este projeto social.
Falo em ousadia porque de fato é preciso coragem para fazer um trabalho deste tipo . Volkan (1997) com seu grupo de diplomatas , políticos, historiadores e psicanalistas realiza poucas e pequenas reuniões verbais, fechadas, com audiência restrita. Ainda assim, a leitura de seu livro nos mostra, quão tenso e perigosos é o clima destes encontros.
Podem vocês imaginar se confrontos étnicos ocorressem pela TV, sob a direção de algum psicodramatista habilidoso e se milhões de pessoas pudessem inter- atuar, mandando perguntas, argumentos, fatos. Espanto-me apenas em pensar!!
Porém quantos de nós , teríamos coragem de dirigir tais sociodramas psico-políticos? Ser diretor de sociodramas e dirigir grandes platéias é tarefa para poucos. Na realidade nenhuma escola de psicodrama nos prepara suficientemente. Moreno nos dá idéias mas temos muito que aprender .Já testemunhei sociodramas caóticos, diretores perdidos e envergonhados e, até mesmo , sapatadas numa grande platéia raivosa . Grandes grupos, tal como Freud os descreveu, parecem funcionar como um animal selvagem a ser domado e a palavra usada na comunicação individual , não se presta para articular sua mensagem. Talvez aplausos, ôlas como nos campos de futebol, talvez tenhamos que pedir ajuda a profissionais de comunicação de massa .
Não sei de que forma exatamente, mas tenho a sensação de que temos que aprender em grupo como lidar com grandes grupos. A experiência de estudar Moreno, um escritor e autor tão complexo, no GEM [11], em grupo, pedacinho por pedacinho, com paciência e persistência, me ensinou que tudo é possível, quando um punhado de pessoas realmente quer.
Volkan (1997 ) sugere, no final do seu livro que talvez seja preciso articular grandes pedidos de desculpas interculturais, intergeracionais e multigeracionais. Há pouco tempo assistimos Michail Gorbachev pedir desculpas em nome da Rússia pelos massacres ocorridos na Polônia; também a Igreja Católica se desculpou por sua apatia diante do extermínio dos judeus na 2ºGuerra Mundial.
Concluindo, eu pediria desculpas a Moreno……………..por tantas vezes tê-lo considerado um tolo sonhador , sozinho na montanha, olhando um futuro que só ele vislumbrava . Talvez ele seja mesmo um tolo……………mas não é o único. Há muitos tolos como ele tentando ajudar as Nações Unidas para que possamos ter algum FUTURO, ao menos.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
Bleichmar, H.(1987)-O Narcisismo – Estudo e Enunciação da Gramática Inconsciente- Editora
Cukier,R. (1998)- Sobrevivência Emocional : as feridas da infância revividas no drama adulto, Editora Ágora, S.Paulo.
Décio de Freitas (1998) ,“ Máscaras do Néo Racismo” , Jornal “O Globo”, 9 de agosto de 1998, Porto Alegre.
Freud, S.- “Psicologia das Massas e análise do Ego ”- tomo III- obras completas.
Nagy Boszormenyi I. -Lealtades Invisibles(1983)- Editores Amorrortu- Buenos Aires
Miller, A. (1993)- Breaking Down the Wall of Silence, Meridian Book, New York
Moreno, J. L ( 1975) – Psicodrama, São Paulo, Cultrix.
Moreno, J. L. (1992) –As palavras do Pai- Editora Psy, Campinas, São Paulo.
Moreno, J. L.-(1992) Quem sobreviverá? Fundamentos da Sociometria, Psicoterapia de Grupo e Sociodrama, Dimensão Editora, Goiânia.
Kohut, H. (1988)- Psicologia do Self e Cultura Humana, Edi.t. Artes Médicas, Porto Alegre.
Volkan, Vamik ( 1997) – Bloodlines – from Ethnic Pride to Ethnic Therrorism, Farrar, Straus and Giroux, New York.
Samuels, A. (1988)- “Dicionário Crítico de Analise Junguiana”, Edit. Imago, R.J.
Schutzemberger, Anne A.(1997)-“ Meus antepassados”, Editora Paulus.
Notas de Rodapé
[2]Keynote= palestras – chave
[3]Conflito armado maior é definido como conflito prolongado entre forças militares de dois ou mais governos e que produzam acima de 1000 mortes.
[4]Ataques terroristas inspirados em diferenças étnicas e/ou religiosas, liderados por indivíduos ou pequenos grupos.
[5]A diferença entre nação e grupo étnico é que a nação implica numa política autônoma e no estabelecimento de fronteiras, ou pelo menos organizações que criam papéis, posições e status. A maioria das nações é formada por mais de um grupo étnico e alguns estudiosos chamam os grupos étnicos de sub-nações.
[6]Na Iugoslávia, por exemplo, são pessoas do mesmo sangue, mas de diferentes religiões que se matam .
[7] O inconsciente coletivo de Jung é um conceito mais amplo do que o de inconsciente formulado por Freud. Ele inclui , além da experiência infantil reprimida, a experiência acumulada filogenéticamente pela espécie humana e opera independentemente do Ego, por causa de sua origem na estrutura herdada do cérebro. Suas manifestações aparecem na cultura como motivos universais que possuem grau de atração próprio.( Samuels A,1988:104/105)
[8]Moreno( 1975:31) descreve o co-inconsciente como um estado experimentado simultaneamente pelos participantes de determinada vivência e que portanto também só pode ser reproduzido e representado em conjunto.
[9]A desordem do estresse pós-traumático consiste numa reação debilitante que se segue a algum evento traumático. Muito freqüente em ex – combatentes de guerra, também inclui reações a acidentes sérios, desastres naturais, ataques violentos tais como estupro e tortura. A pessoa acometida apresenta persistentes memórias dos fatos mais chocantes, que intrusivamente assolam seu o pensamento na forma de pesadelos ou fantasias diurnas. Experimenta também problemas de sono, depressão, irritabilidade, falta de pertinência, solidão.
[10]Lei de Talião , pertence ao Código de Hammurabi, Rei da Babilônia em 2500 BC, pela qual a pena se graduava conforme o dano produzido pelo agente
[11]GEM – DAIMON – Grupo de Estudos de Moreno na clínica Daimon em São Paulo
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PSICOSOCIODRAMA DA INVEJA – Atire a primeira pedra se você puder!
Introdução
A inveja é um fenômeno humano universal e atemporal. Faz parte da estrutura do psiquismo humano e atua sobre a cultura humana e a organização social. Ela é um dos maiores tabus da humanidade, talvez apenas equivalente à sexualidade no século XIX.
Proibida pela Bíblia como pecado capital, é um sentimento que tem que ser mantido escondido, o que torna seu estudo difícil e indireto. Iminência parda por trás de ideologias que pregam a igualdade, a inveja tem, historicamente, motivado crimes, políticas e revoluções.
Pois bem, diferentes todos somos; há que se aprender a lidar com essas diferenças. Será que isso é possível? Como se aprende a lidar com as diferenças? Como se convive melhor com a injustiça primordial da existência humana? O que fazer quando sinto inveja? Como lidar com a inveja alheia? Será que provoquei a inveja alheia? Quem me inveja pode me fazer mal, o famoso “olho gordo”? Essas são as questões que me motivaram a pesquisar o tema. Por isso também proponho o psicossociodrama : a inveja, na esperança de não calarmos sobre temas vergonhosos, mas, pelo contrário, percorrermos, respeitosamente irmanados, este árido caminho.
Nunca soube lidar com a experiência emocional da inveja. Nem a minha própria, horrivelmente amargada no interior de meus pensamentos, nem a dos outros, sabiamente negada e exteriorizada com toques de ressentimento e rejeição.
De todas as vivências humanas percebi, consultando vasta literatura ao longo dos últimos anos, que a inveja é a menos estudada e sobre a qual menos se escreveu, sobretudo na psicologia. Só a sexualidade humana foi tão reprimida em outras épocas.
Dizem alguns autores que não há dignidade neste sentimento. Até a raiva e o ódio extremos podem ser explicados por uma razão nobre qualquer, mas a inveja sempre representa um sentimento obscuro, sem justificativa legal, mesquinho e isolado, fútil, escondido como convém aos bandidos, ladrões e assassinos, escórias da raça humana.
E, no entanto, atire a primeira pedra se você nunca a sentiu! Se nunca desejou mal a alguém por algum atributo que nele você admirava. Se jamais evitou situações que o confrontariam com aqueles que exibem qualidades que você não tem, ou nunca tomou partido apenas para não favorecer aqueles que possuíam aspectos que você cobiçava etc. “Praticamente tudo o que traz felicidade estimula a inveja”, diz Aristóteles (2000).
E talvez você também nunca tenha pensado que sem a inveja, e a consequente capacidade de sempre estarmos nos comparando e nos vigiando mutuamente, talvez não tivéssemos o desenvolvimento dos sistemas sociais a que todos pertencemos. Considere também como ela, a inveja, jaz soberana, como eminência parda, por trás das políticas sociais e econômicas e de quase todos os movimentos revolucionários da história da humanidade.
Segundo Helmut Schoeck (1987), há crimes por inveja, políticas baseadas na inveja, instituições elaboradas para regular a inveja e inúmeros motivos para se evitar ser invejado pelos outros. Calcadas num sentimento de injustiça pelas diferenças (sejam elas quais forem: financeiras, estéticas, filosóficas) e na ideia de que todos deveriam ser igualmente contemplados, muitas políticas de expropriação foram conduzidas. Desde o século XVIII, com o emblemático lema da Revolução Francesa, “Igualdade, fraternidade e liberdade”, até as revoluções socialistas (séculos XIX e XX), apregoa-se a filosofia da igualdade, um ópio para o sentimento de inveja, que ganha força demagógica nessa aparentemente justa indignação.
A inveja, segundo de La Mora (1987), é o maior tabu humano não falado. Todos a sentem, mas poucos admitem, o que torna seu estudo difícil e indireto. Curiosamente, entretanto, quando honrosamente revestida da carcaça ideológica da igualdade, ela se torna o baluarte da justiça humana. Este mesmo autor conclui seu brilhante livro Egalitarian Envy (Inveja igualitária) argumentando pela saudável necessidade da diferença e pelo absurdo de se imaginar que a igualdade possa ser conquistada pela coerção ou demagogia.
Ainda a título de curiosidade e já me aproximando da psicologia e do psicodrama, sabemos que a inveja é um sentimento apreendido no cluster um e exteriorizado maciçamente no cluster três (BUSTOS et al., 1994, p. 362), cluster de papéis simétricos, fraternais e amorosos, com dinâmicas de cooperação, competição e rivalidade. Habitualmente não invejamos reis e rainhas e suas fortunas acumuladas sem trabalho braçal, mas podemos invejar nosso vizinho de porta porque ele comprou um carro novo. A história de Caim e Abel parece ser a metáfora certa ilustrar para esse sentimento.
Inveja: conceito
A palavra inveja vem do latim in-videre, que significa não ver, ou ver enviesado. A inveja se manifesta popularmente no olho gordo, “evil eye”, olho do diabo. Parece que ser visto é central para o tema da inveja, tanto para quem é invejado (é visto) quanto para quem inveja (olha). Esse fenômeno psicológico pressupõe um contexto social: a coexistência de duas pessoas. Há inúmeras definições do sentimento, que variam de acordo com o aspecto do fenômeno que se quer abarcar:
• Inveja é um tipo de dor psicológica sentida quando, ao nos compararmos a outra(s) pessoa(s), avaliamos que nosso valor, nossa autoestima e nosso autorrespeito estão diminuídos.
• Inveja é a dolorosa observação daquilo que nos falta.
• Sentimos inveja quando outra pessoa tem características superiores às nossas.
• Inveja é um tipo de admiração e amor por aquilo que não se tem.
• Schadenfreude é uma palavra de origem alemã usada também em outras línguas para designar o sentimento de alegria ou prazer pelo sofrimento ou infelicidade dos outros.
• Inveja é o sentimento que nos toma quando observamos o sucesso dos outros.
Em todas as línguas, desde as primitivas até as indo-europeias, arábicas, japonesa e chinesa, há um termo que designa a pessoa invejosa. As sociedades poligâmicas primitivas já possuíam políticas para lidar com a inveja, sobretudo a relacionada à distribuição de afeto e bens de forma igualitária entre esposas e descendentes. Muitos conflitos foram travados pela comparação das desigualdades, muitas superstições e rituais foram elaborados para magicamente conseguir os benefícios desejados (SCHOECK, 1987).
A inveja é, portanto, um fenômeno universal; conceituá-la, entretanto, não é tarefa fácil. Primeiro, ela é usualmente confundida com o complexo sentimento de ciúme, e esta distinção precisa ser feita. Outra dificuldade vem das possíveis gradações desse sentimento. É por aí que se ouve falar de uma “inveja boa”, bem próxima de uma admiração e fácil de ser admitida, em oposição à “inveja ruim”, esta, sim, semelhante à palavra em alemão Schadenfreude, que consiste num verdadeiro tormento diante da boa sorte alheia e um extremo prazer com seu infortúnio.
Inveja e ciúme
Nem sempre é fácil separar inveja de ciúme. Ambos os sentimentos pressupõem interações sociais, comparações entre indivíduos, e são extremamente prejudiciais para as relações. A inveja em geral se refere a uma relação dual , onde o sujeito sente falta de algo que o outro tem e o desejo de que ele não o tenha. Já o ciúme tem a ver com as relações triangulares e basicamente consiste no medo de perder uma relação para outra pessoa. A inveja prefere destruir enquanto o ciúme visa controlar.
Em ambos os sentimentos existe uma falta. No ciúme a falta se refere ao medo de perder algo ou alguém que você já possui para outrem. Na inveja a falta se refere a algo que você não possui, mas que outra pessoa tem.
Ambos os sentimentos são exteriorizados de forma muito semelhante: são parcialmente negados, mas aparecem indiretamente através do medo de perder, raiva, traição, insegurança, inferioridade, vingança, paranoia etc.
Foster (1972, p. 167) sugere que a inveja provoca o ciúme como contrarreação, como se fossem complementares. Se alguém, por exemplo, sente que sua esposa bonita está sendo invejada, começa a temer perdê-la, sentindo ciúme. O mesmo ocorre para qualquer objeto ou atributo que é desejado: quem tem não quer perder, e quem não tem quer obter, ou, pelo menos, não quer que o outro tenha.
Inveja boa e inveja ruim
Talvez para minimizar o impacto deste sentimento tão vergonhoso, ou para dialeticamente evitar as falsas polaridades entre bom e mau, alguns autores argumentam que a inveja possui, pelo menos, um fator positivo, pois costuma ser um combustível ou motivação extra para conquistar sucesso ou atributos que levem à felicidade.
Para a psicologia analítica de Carl Gustav Jung (1991), qualquer que seja o traço de caráter ou atitude que exista na mente consciente e dominante, seu oposto reina igualmente no inconsciente. O conteúdo reprimido no inconsciente precisa se tornar consciente para produzir uma tensão de opostos e com isso flexibilizar e enriquecer a personalidade.
Byington (2002, p. 21-22) fala do potencial criativo da inveja, que seria apenas uma das funções estruturantes da psique, podendo atuar de forma criativa e propiciar o desenvolvimento saudável da personalidade ou, pelo contrário, tornar-se fixada e passar a atuar na Sombra , de forma inadequada, repetitiva e destrutiva.
Num artigo a respeito da obra de Gonzalo Fernández de La Mora (1987), o autor Eduardo O. C. Chaves (1991) mostra que, frente à possibilidade de que os outros possam ser mais felizes do que nós, é possível assumir uma de três atitudes:
1) Emulação: desejar ser como os outros, agir como eles, possuir as coisas que possuem. Esta atitude é positiva pois propulsiona o progresso, o desenvolvimento humano e estimula a competição.
2) Resignação: aceitar nossa (real ou suposta) inferioridade. Esta atitude é negativa, pois ao se conformar o sujeito deixa de dar uma contribuição para o progresso e o desenvolvimento humano, levando à estagnação. Não promove, todavia, a involução.
3) Inveja: desejar que os outros percam aquilo que têm e que gostaríamos que fosse nosso. Esta postura é somente negativa, pois leva à involução. O invejoso deseja o infortúnio e a miséria
daqueles que inveja, quer que aqueles que lhe são melhores se vejam reduzidos a seu nível.
Resumidamente penso que seja possível usar a inveja como um catalisador de energias na direção dos objetos invejados, mais ou menos como um plano de vida ou ambição. Esta seria a inveja boa, a emulação, que não faz mal a ninguém, nem quem a experimenta, nem aquele que é alvo dela.
O foco deste trabalho não é, entretanto, a inveja benigna, e sim a outra, a que faz sofrer e sofre pelo impacto de observar atributos alheios que apontam para a própria inferioridade e culmina numa impotência pessoal e no desejo de destruir o outro. Meu foco é a chamada “inveja verde”, termo cunhado por Shakespeare em Otelo (1999), referindo-se ao ciúme, provavelmente em alusão à bílis hepática, secreção digestiva viscosa verde-amarelada produzida pelo fígado e tão amarga como este sentimento.
Origens da inveja
Os freudianos, liderados por Freud e Melanie Klein, associam a inveja com a pulsão de morte, cujas origens seriam inatas. Em 1920, com a publicação de Além do princípio do prazer, Freud postula que o funcionamento do aparelho psíquico se baseia na oposição entre duas pulsões básicas: a de vida e a de morte. A pulsão de morte seria onipresente, apresentar-se-ia geralmente fusionada com a pulsão de vida e se manifestaria de várias formas tais como: a compulsão à repetição, a reação terapêutica negativa, a agressividade, a inveja, o narcisismo destrutivo etc.
Para Melanie Klein (1974), as origens da inveja são inatas e derivam da agressão constitucional. Uma carga excessiva de inveja precoce representa uma forma particularmente maligna e desastrosa de agressão inata. Primariamente a criança sentiria inveja do seio e, posteriormente e por deslocamento, passaria a englobar a equação seio/pênis, símbolos de vida. Com a maior integração do ego e o surgimento da culpa e do desejo de reparação, a inveja tende a ceder lugar à gratidão. Se a inveja estraga a fruição do objeto pelo desejo de destruí-lo, a gratidão é, ao contrário, “o fundamento da apreciação do que há de bom nos outros e em si mesmo” (CINTRA; FIGUEIREDO, 2004, p. 133).
Os neofreudianos, como Horney (1967), Winnicott (1975) e Hiles (2007), de forma geral enfatizam menos a importância das forças biológicas sobre a personalidade e destacam o impacto das forças sociais e psicológicas. Eles também minimizam a importância da sexualidade infantil e do complexo de Édipo, sugerindo que o desenvolvimento da personalidade é determinado primordialmente por forças psicossociais, e não psicossexuais.
A inveja, para eles, não é uma agressão gratuita para tudo o que é bom, mas a resposta frágil da criança diante da privação, da crença de que aquilo que precisa está sendo refreado por um outro que não quer lhe dar. A raiva resultante seria um esforço para induzir a mãe a realizar seus desejos, não para destruí-la.
A função evolutiva da inveja
De uma perspectiva evolucionária, a inveja é vista como um importante instrumental na luta por uma vantagem competitiva (HILL; BUSS, 2006). A Teoria da Seleção Natural de Charles Darwin postula a preservação evolutiva de características favoráveis à espécie e a extinção daquelas desfavoráveis.
O processo da seleção natural é inerentemente competitivo. O homem primitivo lutava por comida, abrigo, calor; se outro possuísse estes recursos e ele não, faria de tudo para obtê-los, por conta de sua sobrevivência. Somos equipados filogeneticamente para nos observarmos e competirmos e manifestamos tais atributos em nossas interações sociais. Continuamente lutamos para adquirir recursos ou posições que os outros simultaneamente estão lutando para conseguir. Isso ocorre com a aparência física, com adquirir bens perecíveis e até mesmo com professar ideologias, credos etc.
O uso da comparação social é um instrumento de sobrevivência através do qual os homens podem avaliar se estão em vantagem ou desvantagem na batalha da seleção natural. A inveja teria a função de alertar quando um parceiro rival tem vantagens e mobilizaria o indivíduo em questão a buscar adquirir aquela vantagem para si.
O afeto negativo sentido quando se percebe a vantagem alheia, dizem os autores, resulta de um alarme interno que sinaliza que estamos perdendo a competição (o que em tempos primitivos significaria morte para nós e nossa prole). As pessoas sentem raiva, dor e vergonha, como falarei mais adiante, como se uma injustiça estivesse acontecendo, e tentam de vários modos restabelecer o bem-estar . Muitas amizades são rompidas porque um dos parceiros se sente em desvantagem e prefere ficar distante deste sentimento.
Manter a inveja em segredo é também uma estratégia de defesa, na medida em que admiti-la, além de maximizar os méritos alheios, impossibilita outras estratégias de defesa, como utilizar a fofoca para desonrar o outro, dizer que foi injusto etc.
Quando a inveja acontece?
Cada teoria explicativa da inveja tem sua forma de prever quando ocorrerá um episódio de inveja. Os psicanalistas, de forma geral, acreditam que a inveja é diretamente relacionada à experiência de cuidados primários da criança. Isto porque o senso de possuir atributos, corriqueiramente chamado de autoestima, se opõe ao de ser completamente impotente, sem atributos, sem autoestima. Richard Smith (2004) em seu brilhante artigo Envy and its transmutations (A inveja e suas transformações), resume as quatro condições necessárias para a ocorrência da inveja:
1) A pessoa invejada é simétrica a nós em boa parte de suas características: idade, nível socioeconômico etc.
2) Esta semelhança gera a sensação de injustiça, “se somos iguais devemos ter as mesmas coisas”.
3) O atributo que o outro possui é de um domínio relevante para nós.
4) Nossas perspectivas pessoais de obter este atributo são muito escassas.
Uma vez que as quatro condições forem atendidas, o episódio de inveja acontecerá, evoluirá e produzirá várias outras emoções (paranoia, ressentimento, vergonha), esvanecendo a sensação inicial de inveja. Por exemplo, se o foco da comparação apontar para uma inferioridade de habilidades, podemos sentir vergonha por essa inferioridade e começar a censurar moralmente a pessoa em questão, atribuindo-lhe desonestidade. Isso desvia o foco da nossa reconhecida inferioridade e nos justifica para agir de forma hostil contra a pessoa invejada. “O mérito inveja os resultados”, segundo sugestão de Montaldi, citado por Smith (2004).
Algumas pessoas que permanecem conscientes de sua inveja decidem trabalhar arduamente para compensar a desvantagem, torná-la menor. Esta, provavelmente, é a saída mais honrosa para lidar com este sentimento. Alternativamente, outras pessoas ficam atoladas no sentimento de inferioridade que a inveja produz e podem desenvolver um quadro depressivo. É muito razoável pensar que invejas mal resolvidas estejam na base de outros quadros psicopatológicos.
Outra configuração que a inveja pode tomar é apelar para calúnias, fofocas ou sabotagem indireta, para diminuir as qualidades da pessoa invejada. Gaiarsa (1978) explora brilhantemente este território e afirma que o mexerico, a intriga e a fofoca são um meio de controle social, na maioria das vezes provocado pela inveja. Chama de “Peste Emocional” a forma sub-reptícia de as pessoas invejosas atuarem, uma vez que não podem admitir sua verdadeira motivação.
Avi Berman (2007, p. 17-32), um psicólogo clínico contemporâneo, conclui, baseado na observação de crianças, que as pessoas que se beneficiam em situações de inveja são aquelas que admitem o sentimento, acreditam em sua capacidade e se acham igualmente merecedoras. Já aqueles que sofrem com esse sentimento e ficam agressivos e destrutivos são aqueles que não reconhecem a inveja, sentem-se incapazes e especialmente merecedores, mais do que seus rivais.
Autoestima, competitividade, inveja e gênero
A competitividade, a autoestima e a inveja aparecem correlacionadas em quase todos os textos que li para escrever este trabalho. Se pensarmos na inveja como uma emoção adaptativa que nos faz competir para sobreviver, ainda assim os teóricos do desenvolvimento emocional humano teriam que nos explicar como se aprende a competir, ou ainda como aprendemos a avaliar nossas reais capacidades para nos compararmos com nossos rivais.
Se uma pessoa se avalia errado, compete errado. De nada adianta ter muitos atributos se a sensação interna é de desvalia e aponta para deficiências. Como introjetamos a noção de quais são nossas reais capacidades, nosso autovalor, nossa autoestima?
Mais ainda, cada cultura imbui seus cidadãos de valores que condicionam os critérios para ser ou não ser aceito, ser ou não ser valorizado. Nossa cultura historicamente patriarcal tem mudado visivelmente, mas alguns traços sutis levam muitas gerações para de fato se instalarem. Carol Gilligan (1982), no livro Uma voz diferente, mostra que ainda hoje existem formas de competitividade diferentes para homens e mulheres. Homens ainda são criados para uma crescente separação dos outros e para alcançar a autonomia e independência, ao passo que das mulheres se espera, primordialmente, que cuidem das relações, sejam amigáveis e fiéis.
Se um homem é competitivo, poderoso e bem-sucedido, está indo de acordo com as expectativas que se tem para ele, ao passo que uma mulher poderosa, autônoma e bem-sucedida é frequentemente ameaçada de abandono por suas iguais, como se caminhasse em direção contrária e traidora.
Também a psicanálise explica essa questão, mostrando que nas fases de individuação-separação da mãe em direção às outras relações e à autonomia, os meninos não experimentam conflitos de gênero. Eles, se tudo corre bem naturalmente, seguem em direção à identificação com o pai e seus papéis sociais. Já as meninas têm que se individuar-separar da mãe, mas ao mesmo tempo permanecer identificadas com suas funções e papéis sociais, o que pressupõe, ao contrário, não diferenciação e intimidade (CHODOROW, 1999, p. 109).
Competir com a mãe significa separar-se da cumplicidade com ela, lutar para ser diferente dela, melhor que ela porém parecida; é uma tarefa psicológica complexa e carrega uma dor e culpa imensas (LERNER, 1990). As mulheres impregnam suas outras relações de gênero com este conflito; por isso, quando a mulher compete, em geral procura uma fórmula menos individualística, mais indireta. O ganha/perde dessas situações é pretendido pelo “todas ganham”, “ganharemos juntas como um time” etc. (NAVARRO; SCHWARTZBERG, 2007). Estilos de luta encobertos, passivo-agressivos, modéstia e humildade têm sido pré-requisitos para a feminilidade, e àquelas que agiam diferente atribuíam-se adjetivos pouco nobres, como masculinizadas, agressivas ou histéricas (LERNER, 1990).
E a inveja com isso?, vocês devem estar se perguntando. Bem, quem não pode dizer abertamente o que quer e lutar abertamente pelo que precisa só pode invejar esta capacidade nos outros. A inveja é o melhor mecanismo de defesa para o ego que se sente tolhido de recursos e admira uma pessoa que os tem. Com ela dá para aliviar a dor da impotência, utilizando atitudes não muito nobres, escondidas, tais como a fofoca, o maldizer moral – enfim, vale qualquer coisa para diminuir o rival.
Apesar de a inveja ser um fenômeno humano universal e acometer homens e mulheres, ela ainda é mais identificada como um traço da cultura feminina, e não sem razão percebemos que as bruxas perseguidas e mortas na Idade Média por sua atividade maléfica eram mulheres.
E o olho gordo, existe, faz mal?
O “mau-olhado”, ou olho gordo é a crença de que uma doença é transmitida – geralmente sem intenção – por alguém que está com inveja ou ciúme. Essa pessoa normalmente não é seu inimigo, mas com inveja pode prejudicar a você, seus filhos, seus animais ou suas plantações, ao lançar-lhes um olhar cobiçoso. As principais vítimas são bebês e crianças pequenas, porque são muito observados e elogiados por estranhos.
Existem palavras para conotar essa superstição em todas as línguas, bem como registros de rituais e amuletos protetores em todas as culturas, desde as sociedades tribais até nossos tempos de sociedade global. Por exemplo, há relatos sobre inveja nos escritos sumerianos de 4.000 anos a.C. (LANGDON, 1931), e nos sarcófagos do Egito dos séculos XXI e XXII a.C. (ROJAS-BERMÚDEZ, 1998) há desenhos de olhos simbolizando energias atuantes e negativas.
No Mediterrâneo Oriental e na região do mar Egeu, especialmente em toda a Grécia e até na Turquia, há uma forte tendência para ver pessoas de olhos azuis como portadores do “olho mau”, provavelmente porque poucas pessoas têm olhos azuis nessas regiões.
Alan Dundes (1992) fez um estudo multicultural dos talismãs e curas contra o “mau-olhado”, e percebeu traços comuns. Parece que o mal causado pelo olhar é frequentemente ligado aos sintomas de secagem e desidratação, como se o olhar fosse uma espécie de micro-ondas, e muitos rituais para a cura costumam envolver umidade. Vemos um exemplo típico nos peixes usados pelos japoneses como antídotos contra a inveja porque estão sempre molhados. Entre os judeus, é hábito cuspir nos lados da pessoa que foi invejada. Para Freud (1904, p. 919) a crença no “mau olho” é uma superstição e, como tal, representa o medo de desgraças futuras. Além disso, o temor de que “nos desejem mal” seria a manifestação consciente da repressão inconsciente de nossos próprios desejos maldosos contra os outros. É preciso, porém, lembrar que, apesar de supersticiosa, esta crença possui um efeito de sugestionabilidade que não pode ser desprezado.
De Franz Anton Mesmer (1734-1815) (WIKIPEDIA), que com seu magnetismo animal curava dores e doenças pela aplicação de ímãs na fronte das pessoas, passando por Jean-Martin Charcot (1825-1893) (WIKIPEDIA), o hipnotizador das histéricas, e Freud, que abandonou a hipnose concluindo que ela se resumia à sugestionabilidade, às terapias cognitivas contemporâneas (BECK; KUYKEN, 2003), sabemos que as crenças que temos sobre nós mesmos, sobre o mundo e sobre o futuro determinam o modo como nos sentimos e nos comportamos, afetando profundamente nosso bem-estar.
Portanto, sim, o olho gordo faz mal. Ambos, invejados e invejosos, saem danificados ao acreditarem nessa superstição. O invejoso por acreditar que é inferior à pessoa com quem se compara e por obsessivamente perder seu tempo e sua criatividade tentando controlar o invejado. Já a pessoa que acredita ter sido infectada pelo “olho gordo” também apresentará, por sugestionabilidade, o mal-estar correspondente e sentir-se-á impelida a cumprir um ritual para se curar.
Marketing e inveja – o poder e o perigo de ser invejado
A maior parte dos estudos sobre a inveja foca sua observação na pessoa que sente inveja. O alvo da inveja, a pessoa que é invejada ou se faz invejar, é pouco estudado. Possuir atributos, facilidades na vida, estar em posição de destaque causa sentimentos variados, desde a sensação de poder até culpa, desconforto e medo de que algo ruim esteja para acontecer. Os gregos, segundo Helmut Schoeck (1987, p. 141-152), mencionam em vários mitos a inveja dos deuses, como se houvesse uma justiça divina na distribuição dos bens com garantida punição para quem ousar ultrapassar os limites. Na mesma linha de raciocínio, vemos a ideia de que o prazer é proibido em muitas religiões ou ao menos taxado com o dízimo, que se encarrega da justiça redistributiva.
Numa sociedade capitalista, em que o consumo é estimulado por um marketing agressivo que usa e abusa da comparação entre pessoas, estamos o tempo todo sendo instigados a invejar algo. Invejamos o carro, saborosamente oferecido na televisão por uma pessoa mais bonita ainda que o carro, que veste roupas e acessórios mais bonitos do que ela e o carro e, além de tudo, está sendo fotografada num lugar paradisíaco, muito melhor que o carro, o modelo, as roupas e os acessórios.
Ser alvo da inveja alheia confere status de poder e reasseguramento do próprio valor. Predispõe também a receber atos agressivos, diretos ou indiretos, como desvalorização moral, fofocas, sabotagem etc. e uma desconfortável sensação de culpa, por ser a causa involuntária do sofrimento alheio.
Assim como o consumidor alvo da propaganda exemplificada acima, quando somos comparados com pessoas que têm atributos superiores aos nossos, sentimos uma agressão em nossa autoestima, o que demanda uma ação de retaliação para recuperar nosso valor. Fazer-se invejar pode ser um ato agressivo, pois a inveja é uma emoção social e afeta não apenas indivíduos isolados, mas grupos.
George Foster (1972) sugere que há dois parâmetros para analisar a inveja: do ponto de vista competitivo é útil ser invejado; já do ponto de vista do medo de ser retaliado, é mais seguro passar despercebido e esconder suas qualidades.
Lidar com a inveja dos outros é uma tarefa complexa. Os estudos em psicologia social e sociologia sugerem algumas estratégias comumente utilizadas para se relacionar com pessoas invejosas:
• Minimizar nossas próprias qualidades;
• valorizar o esforço que tivemos que fazer para conseguir tais qualidades;
• elogiar a pessoa que nos inveja, tentando salientar qualidades nela;
• ajudar quem nos inveja, tentando dar-lhe algo de bom;
• esconder nossas qualidades sob pretensa humildade, modéstia;
• socializar nossos ganhos egoicos, mostrando como nossas qualidades ajudam outras pessoas etc.
Ser invejado, enfim, é uma posição existencial ambígua. Ao mesmo tempo em que representa uma forma solitária de reasseguramento, mais-valia, pode acabar gerando um isolamento relacional, uma carência de pares simétricos com quem compartilhar alegrias.
A inveja na literatura psicodramática
Só encontrei um texto dedicado à inveja no nosso mundo psicodramático nacional e internacional. Foi o artigo de Rojas-Bermúdez (1998), De la envidia y de la violencia. O autor estuda a relação entre inveja e violência, concluindo que a violência é o resultado da falta de recursos do Eu para elaborar a inveja despertada pelo outro. Concebe a inveja como um aspecto natural do ser humano, como a fome e a sede, só que insaciável, daí sua tragédia (sic). Ela é desencadeada por um fato social, o encontro com um alguém cujas virtudes evidenciam nossas limitações. Diz o autor: “A inveja é uma resposta emocional que surge em função da existência de carências afetivas prévias e que se estabiliza como paixão” (ROJAS-BERMÚDEZ,1997, p. 53).
Elaborá-la depende dos recursos intrapsíquicos, dos valores e das possibilidades intelectuais de cada pessoa para transformar este sofrimento em criatividade e compensar a carência. Se fracassar, tentará primeiro lutar contra essa paixão e posteriormente lançará suas energias contra a fonte de sua paixão, o outro, o invejado, iniciando a violência.
Moreno (1992) não estudou diretamente o fenômeno da inveja humana, apenas o mencionou de quando em vez em sua obra, tangenciando, porém, várias questões relevantes ao tema, através do teste sociométrico.
Cita, por exemplo, “a inveja do criador”, referindo-se à rivalidade existente entre pessoas criativas, sejam elas heróis, cientistas ou revolucionários, rivalidade que poderia ser avaliada, inclusive, através das citações que os autores de textos científicos fazem de seus colegas:
[…] Esse fenômeno foi denominado “inveja do criador”. Pessoas como ele, precursores dos que desempenham a função de “relações-públicas” em nossa era iluminada, podem ter aparecido, frequentemente, no curso da história, heróis do povo, agindo concomitantemente como antigênios e gênios.
[…] Existiram frequentemente gênios rivais em conflito entre si; o fogo foi roubado a cada geração e assim gradualmente a metodologia científica desenvolveu-se. [Refere-se ao mito de Prometeu.]
[…] Eu usei uma sociometria fria (fria porque está congelada nos livros). (MORENO, 1992, v. 1, p. 135)
Parece acreditar inclusive que esta competitividade seja positiva para a ciência, apesar de penosa para as estrelas sociométricas que podem ser rejeitadas por seu pioneirismo. Diz: “O fenômeno da inveja ao criador não deixa de ter boas características sociais; ajudou a liberar o método científico” (MORENO, 1992, v. 1, p. 140).
A produção psicodramática revelou profunda hostilidade, sendo reforçada por um dos dois indivíduos-chave e rivais, às vezes, resultando em percepção distorcida do pioneiro e de seu trabalho. A reação em cadeia produziu rede social de negação que pode ser denominada antipatia pelo pioneiro, ou inveja do criador. (MORENO, 1992, v. 1, p. 136-137, grifo nosso).
Moreno também compreendeu a força sociométrica da inveja, que através do boicote direto ou indireto pode relegar ao ostracismo gênios criativos.
[…] elogiar ou condenar, roubar ou desdenhar silenciosamente, citar ocasionalmente ou não citar o trabalho de um gênio é modo dinâmico de definir seu lugar ao sol. (MORENO, 1992, v. 1, p. 139)
Em relação às revoluções sociais e suas reais motivações, soterradas por trás das ideologias, Moreno sabiamente percebeu a importância que o sentimento de inveja tem quando as disputas envolvem questões de merecimento versus questões de direito . Diz, a propósito do nazismo:
[…] Se, como é afirmado, os judeus da Alemanha ocupam situação desproporcional, de acordo com sua importância numérica, nas profissões liberais, nas artes, na indústria, isto talvez se deva a um excesso de esforço de sua parte, maior talvez que o despendido por alemães, igualmente, talentosos. Neste caso surgem correntes de agressão e de proteção, na tentativa de equiparar condições que pareçam ameaçar a força de certos elementos do grupo majoritário.
[…] Como a maioria dos grupos dependentes é alemã, podemos, então, imaginar os sentimentos de rancor surgindo entre grupos de líderes alemães, sentimentos que se aliam à convicção de que eles têm mais “direitos naturais” do que os líderes judeus de dirigir as massas de trabalhadores e fazendeiros alemães. (MORENO, 1992, v. 3, p. 128-130)
Moreno sabia e buscava dar relevância ao poder que um ser humano tem sobre o outro, à importância de se sentir gostado e aceito, não só nas primeiras relações afetivas, mas em todas as relações ao longo da vida. Sempre esteve interessado nas minorias não aceitas, nos proletariados sociométricos , buscando reinseri-los em algum grupo. Fez isso através da sociometria, sobretudo através do teste sociométrico, cuja proposta básica era permitir que as pessoas escolhessem as relações e os agrupamentos onde gostariam de estudar, trabalhar – viver, enfim.
Ele não se ocupou de forma direta da questão da autoestima ou do narcisismo em nenhum momento de sua obra. E não o fez provavelmente pela ênfase que sempre deu aos aspectos relacionais em detrimento das questões ligadas ao intrapsíquico. O mais perto que chegou de refletir sobre as questões da relação do Eu consigo mesmo foi a formulação do conceito de auto-tele (MORENO, 1992, p. 140), usado para falar da relação da criança consigo mesma e com sua imagem, e a propósito do colapso da autoimagem dos psicóticos.
Algumas vezes Moreno parece se referir à noção de valor pessoal, mas o termo que usa é “status”. Menciona, por exemplo, “status sociométrico”, referente ao total de escolhas que um indivíduo tem dentro de um grupo; “status do homem na ordem cósmica”, a propósito do abalo que representou para o orgulho do homem as descobertas copernicanas etc.
Por conta das resistências suscitadas pelo teste sociométrico, Moreno percebe que existe um medo de expor as preferências relacionais. Referindo-se aos procedimentos sociométricos, afirma:
A resistência parece à primeira vista paradoxal já que surge frente à real oportunidade de ter uma necessidade básica satisfeita. Esta resistência do indivíduo contra o grupo pode ser explicada. É por um lado o medo que o indivíduo tem de conhecer sua posição no grupo. Tornar-se por si próprio, ou através de outros, consciente desta posição pode ser doloroso e desagradável. Outra fonte de resistência é o medo de que ela possa tornar-se manifesta para outras pessoas de quem gostamos ou mesmo de quem não gostamos e qual seria a posição no grupo que, realmente, queremos e precisamos. A resistência é produzida pela situação extraindividual de um indivíduo, pela posição que ele tem no grupo. Ele sente que sua posição no grupo não resulta de seus esforços individuais. É, principalmente, o resultado de como os indivíduos, com quem convive, se sentem em relação a ele. Poderá até sentir, ligeiramente, que além de seu átomo social existem tele-estruturas invisíveis influenciando sua posição. O medo de expressar os sentimentos preferenciais que uma pessoa tem pelas outras é, na verdade, o medo dos sentimentos que os outros […] nutrem por ele. […]
Estes procedimentos deveriam ser acolhidos favoravelmente já que ajudam no reconhecimento e na compreensão da estrutura básica do grupo. Porém este não é sempre o caso. Encontram resistência e até hostilidade por parte de algumas pessoas[…].
Outros indivíduos também mostraram medo das revelações que o procedimento sociométrico poderia trazer. O medo é maior em algumas pessoas e menor em outras. Umas podem estar mais ansiosas para arrumar seus relacionamentos de acordo com seus desejos atuais, outras têm medo das consequências… Estes e outros fatos revelam um fenômeno fundamental, a forma de resistência interpessoal, resistência contra expressar os sentimentos preferenciais que uns têm pelos outros. (MORENO, 1992, p. 202-203)
Quanto às diferenças sociais e a injustiça em relação à distribuição de bens e qualidades, o conceito moreniano de efeito sociodinâmico parece descrever este processo. Segundo ele, somos diferentes e esta diferenciação é detectada e parcialmente amenizada pelos procedimentos sociométricos. Seria, entretanto, utópico imaginar sociedades absolutamente igualitárias.
A hipótese do efeito sociodinâmico afirma que: a) alguns indivíduos de determinado grupo serão persistentemente excluídos de comunicação e de contato social produtivos; b) alguns indivíduos são constantemente negligenciados, muito aquém de suas aspirações, e outros muito favorecidos, de modo desproporcional a suas demandas; c) surgem conflitos e tensões nos grupos à medida que o efeito sociodinâmico aumenta, ou seja, com a crescente polaridade entre os favorecidos e os negligenciados. Com a diminuição do efeito sociodinâmico – redução da polaridade entre os favorecidos e os negligenciados – diminuem os conflitos e as tensões.
[…] Surgiram, porém, questões quanto à possibilidade de haver sociedade sem efeito sociodinâmico, se tal sociedade já existiu ou existirá, no futuro, e se seria superior à presente. Muitas sociedades religiosas tentaram eliminar o caráter diferencial do grupo, através da supressão de percepções e sentimentos de diferenciação em suas mentes, segundo seus sistemas de valores que postulam que todos os homens são irmãos e iguais, filhos de Deus. A diferenciação torna-se então pecado mortal e a sociometria, ciência do demônio. Outra possibilidade seria aceitar o efeito sociodinâmico como nosso destino. (MORENO, 1992, v. 3, p. 195)
Minha opinião
A inveja é um fenômeno humano universal, atemporal e inevitável. Faz parte da estrutura do psiquismo humano e atua sobre a cultura humana e sobre nossa organização social. A forma, entretanto, de lidar com este sentimento varia de acordo com o equilíbrio emocional e a autoavaliação que cada um de nós faz de suas qualidades, capacidades e merecimentos diante das circunstâncias da vida.
Em meu livro Sobrevivência emocional (1998), desenvolvi a ideia de que os diferentes aspectos de nossa identidade – ou, nos termos da teoria de papéis de Moreno, nossas diferentes possibilidades relacionais – se organizam de acordo com uma espécie de “Sistema de Manutenção da Autoestima”. Acredito que das primeiras relações de dependência se estrutura o papel central de nossa identidade. O valor que o “eu” adquire nesta primeira avaliação será determinante das manobras compensatórias que ele terá que fazer para manter seu narcisismo em níveis suportáveis.
No início da vida extrauterina a criança não sabe de onde vem o prazer e o desprazer. Experimenta os papéis psicossomáticos , como um todo indiscriminado – ela, o mundo, a mãe e o seio, ela a cólica, a cólica e a mãe. Só aos poucos, conforme amadurece o sistema neurológico e através da repetição da experiência, a criança vai associando o prazer com a presença da mãe ou cuidador e o desprazer com sua ausência (isto quando se trata de uma criança normal, com pais normalmente provedores).
Ou seja, aquilo que inicialmente era decodificado como prazeroso porque saciava uma necessidade fisiológica de sobrevivência começa a ganhar certa independência e já não precisa da necessidade fisiológica para ocorrer . A presença da mãe e/ou cuidador(es) começa a gerar prazer, mesmo quando não há nenhuma necessidade para ser satisfeita. É o prazer de ser visto, tocado, cuidado, ouvido por alguém que potencialmente é mais poderoso e que me outorga certo poder se escolhe ficar comigo. O contrário também é verdadeiro: começa a existir a experiência de desprazer cada vez que o cuidador não aparece, ou aparece e não dá toda a atenção que o sujeito espera.
Este novo tipo de prazer-desprazer é o que vai constituir aquilo que chamo de “Economia Narcísica” ou “Sistema de Manutenção da Autoestima”, um segundo sistema dentro do psiquismo, acoplado ao que regula o prazer e desprazer corporais, encarregado de determinar, a todo o instante, qual o valor do Eu para o outro (quanto o outro estima o Eu) e para si mesmo (autoestima). Sabemos todos por experiência própria que existe uma dor que não é física, mas psicológica. A autoestima precisa ser mantida dentro de alguns níveis de valoração, senão produz-se dor – é a dor de não ser amado, a dor de se perceber pouco importante para o outro, a dor de se sentir vulnerável, a dor de se sentir enganado, traído, e também a dor da inveja, sentir que outro possui atributos que você queria para si. Isto é o que Kohut (1984, p. 80-121) chama de “Injúria Narcísica”, a súbita percepção de que o Eu, que se julgava valorizado por outrem e por si mesmo, na realidade pode perder o valor subitamente.
Os critérios para o Eu se sentir valorizado ou não movem-se dentro de parâmetros ditados pelo meio familiar e sociocultural do qual o sujeito emerge; são critérios relativos e algo flexíveis, pois se modificam com o desenvolvimento, com o momento da vida etc. Entretanto há duas regras, extremamente simples de serem formuladas, que coordenam a estrutura central desse sistema valorativo, uma inter-relacional e outra intrapsíquica:
1) Por inter-relacional entendo todas as relações que uma pessoa estabelece com outras pessoas, desde as primeiras relações com a mãe e familiares até as complexas relações adultas. Neste sentido, sempre que o Eu se sente valorizado por outrem, gratuitamente ou por algo que tenha feito, seu valor intrínseco e sua autoestima sobem; o contrário também é verdadeiro e a pessoa se sente desvalorizada quando não recebe toda a atenção que deseja.
2) Já o intrapsíquico é constituído pelas relações que uma pessoa mantém consigo mesma, e neste contexto a regra para o Eu saber se tem ou não valor é ainda mais simples: o Eu se gosta quando é gostado e não se suporta se é rejeitado ou desprezado.
Cada pessoa possui provavelmente um nível ótimo de valor pessoal que seu psiquismo precisa manter para sobreviver psicologicamente. Quando este autovalor ou autoestima está muito baixo, recursos defensivos são criados para tentar otimizá-lo através de certa compensação de forças. A violência gerada pela dor da inveja seria uma destas manobras defensivas, que busca compensar nosso autovalor diante da superioridade que percebemos no outro.
Portanto, trabalhar terapeuticamente com a inveja implica rever a vida emocional do cliente e seu narcisismo. É um trabalho que se inicia a partir de um conflito atual, mas que percorre o tempo da vida do cliente, através de associações cênicas e do rastreamento de repetições e transferências (CUKIER, 1998, p. 69-76). O objetivo final é promover reparações no Sistema Mantenedor da Autoestima, ou Sistema Narcísico, do paciente que, como expliquei anteriormente, consiste numa espécie de central autoavaliadora ou, em termos morenianos, central sócio e autométrica permanente que temos no psiquismo e que nos informa a todo momento qual nosso valor para o outro e para nós mesmos.
Conclusão: como trabalhar psicodramaticamente com a inveja?
Em geral o tema da inveja aparece indiretamente através de conflitos relacionais ou, mais frequentemente, através da observação do cliente de que os outros têm inveja dele. Nunca recebi um caso em que a pessoa identificasse seu problema como um excesso de inveja, pela vergonha que tal declaração promoveria.
Por isso creio que devemos trabalhar a questão de forma indireta também, seguindo as sinalizações do cliente. O psicodrama nos oferece muitos recursos para ir avançando, desde as cenas atuais de um conflito relacional até o drama intrapsíquico, no qual se desvendam temas como a autoestima e o narcisismo. O trabalho com cenas regressivas (CUKIER, 1998, p. 69-76) e suas repercussões atuais é, em minha opinião, o mais profundo neste sentido.
Talvez o mais difícil seja iniciar o aquecimento para que o paciente se predisponha a abordar o tema da inveja. Faço isto de forma sutil, utilizando a inversão de papéis sempre que a demanda venha na forma de “o outro me inveja”. Peço que o paciente seja este outro, ponha-se em sua postura, experimente a vida um pouco como se fosse ele. Exploro bem esta inversão, sobretudo o sentimento de raiva que os atributos do rival causam no cliente.
A inversão de papel permite também que o cliente vivencie a temática da inveja dos dois lados: sendo o invejado e o invejoso. Em ambos os papéis podemos pedir associações com situações já vividas e aprofundar na psicodinâmica.
A interpolação de uma escultura desta relação conflituosa é muito útil para se trabalhar o tema a distância. Tive uma cliente que se queixava do quanto sua cunhada, muita rica, invejava sua disposição para trabalhar e lutar pela vida. Ao jogar o papel da cunhada, pedi que me falasse de como a riqueza aparecia em sua forma de ser, se nas roupas, na postura etc. A cliente imediatamente pôs-se a descrever com detalhes as marcas de seu vestuário, as bolsas assinadas, as compras na Daslu (boutique de moda) etc. Sua postura era majestosa, movia-se como uma rainha. Pedi que ela, ainda no papel da cunhada, falasse o que achava da minha cliente, e a primeira coisa que foi dita foi: “Ela é pobretona, veste-se mal, compra na José Paulino (rua de comércio popular)”.
Em seguida pedi para a paciente olhar a distância esta relação e criar uma escultura de barro de duas pessoas que se relacionam assim. Como seria a escultura? Que postura teria a rica e que postura teria a pobre? Depois lhe pedi que nomeasse a escultura. O nome que a cliente deu foi: “A escrava e a rainha”.
A temática da escrava e da rainha foi a tônica de toda a terapia desta cliente, que aos poucos enfrentou seu sentimento de inferioridade na infância. Muitas cenas foram dramatizadas: cenas na escola primária, em que precisava sempre pedir emprestado o material escolar porque seus pais não podiam comprá-lo; cenas nas refeições familiares, quando não havia carne para todos e os pais não comiam, gerando culpa nos filhos – cenas, enfim, em que ela aprendeu a não querer coisas que não poderia ter e a odiar pessoas que as tinham.
Compreendendo a dor e a impotência infantis e aprendendo a não sucumbir a elas nem utilizar as mesmas defesas de outrora, a cliente pôde perceber que era adulta, ganhava bem e podia se dar coisas, objetos e confortos que gostaria. Na última sessão da terapia trouxe uma bolsa de marca famosa, dizendo que tinha sido um presente para si mesma, depois de ter tido coragem de olhar para sua vida. Nunca mencionamos a palavra inveja durante o processo terapêutico, e a cunhada desapareceu, aos poucos, de seus conflitos.
A técnica do duplo é desaconselhável na temática da inveja. Falar para um cliente que ele sente inveja é quase dar-lhe um tapa na cara, o contrário da ideia de um trabalho sutil.
Já o espelho, que favorece um olhar distanciado do conflito, é de grande auxílio terapêutico. No caso relatado acima, muitos insights foram obtidos quando a cliente, olhando a distância a cena que acabara de jogar com a cunhada, era remetida à lembrança de outra cena, em outro contexto, em que também se sentia escrava. O espelho favorece a percepção da cadeia transferencial.
Metáforas, maximizações, concretizações, jogos dramáticos, são todos possibilidades de ação úteis e desejáveis, especialmente no psicodrama grupal, em que a temática da inveja surge in situ, envolvendo todos os participantes do grupo, inclusive o terapeuta e o ego auxiliar. Foram frequentes na clínica situações grupais nas quais algum cliente se ressentia da atenção que eu, como terapeuta, havia dado para outro cliente. Mesclados neste ciúme revelado, repetidas vezes vi aflorarem, após algum trabalho, sentimentos de inferioridade em relação ao rival, associações com situações da família primária etc.
A loja mágica, na qual o cliente compra simbolicamente diferentes tipos de características, ao mesmo tempo em que vende ou troca traços de caráter ou personalidade, costuma ser útil para aclarar o que é cobiçado no outro.
Um aspecto muito importante no trabalho terapêutico com a inveja é auxiliar o cliente a fazer o luto do ideal de justiça do mundo, a aceitar a realidade injusta da vida. Igualmente importante é aceitar o sentimento de inveja, sem se desqualificar, percebendo que é uma emoção humana, mas que não tem que se tornar uma obsessão, nem conduzir ações de vingança, ódio etc. O cliente precisa também legitimar o desejo que está implícito na inveja e empreender ações para obtê-lo. A técnica do role-playing é muito boa para aprender e testar novos papéis, atitudes, aspirações etc. Finalizando, devo dizer que uma terapia eficiente para a inveja ajuda o cliente a reduzir sua vergonha, aumentar seu autovalor, contemplar seus próprios desejos e se abrir para a riqueza da vida. Menos força psíquica será utilizada para se comparar com os outros, e mais em compaixão por si mesmo e por todo mundo que luta para ter a melhor vida que pode.
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Sempre fico surpresa ao investigar psicodramaticamente as adições dos meus clientes. Invariavelmente, o conflito que surge entre a droga ¾ objeto da adição ¾ e a parte adita da personalidade do cliente tem semelhanças com várias tragédias descritas na literatura clássica. É o caso do mito de Fausto na versão de Goethe[1].
Trata-se da história do cientista Fausto que, burlando as leis da Igreja na Idade Média, busca, de forma incansável e onipotente, desvendar o mistério da existência. Domina várias ciências, mas nenhuma delas sacia seu desejo de transformar-se numa espécie de “Deus”, com acesso ilimitado a tudo o que ocorre na natureza.
Consciente de seus limites humanos e inconformado, é abordado e seduzido por Mefistófeles (o diabo). Compromete-se a entregar-lhe a alma em troca de conhecer e experimentar intensamente os prazeres mundanos e de ter o dom de controlar o tempo e as pessoas, fazendo-as oscilar segundo seu desejo.
O resultado é funesto. Por onde passa Fausto espalha infelicidade e, no final, descobre-se vítima da própria sede de onipotência, pois acaba ferindo a si mesmo e à única mulher que deveras amou.
Assim como Fausto, a pessoa adita busca burlar as regras do sistema. Só que, neste caso, trata-se de burlar não apenas uma instituição, mas a própria natureza humana, desafiando sua vulnerabilidade essencial. Nós, humanos, somos impotentes diante da falta de lógica e justiça na distribuição de infortúnios e diferenças ¾ família em que nascemos, saúde, riqueza, beleza, inteligência etc. ¾ e diante de um futuro que desconhecemos, mas que nos garante apenas nossa própria morte, bem como a daqueles a quem queremos muito.
Parodiando a tragédia de Fausto, o verdadeiro EU[2] de um ser humano vende sua alma à parte adita, em troca da promessa de alívio rápido para todas as tristezas, dores e frustrações que a vida normal ocasiona.
Mais ainda, a observação de vários casos clínicos mostrou-me que a pessoa potencialmente adita parece acreditar que a vida dos outros seres humanos não é igual a sua e não produz as dores e decepções que ela experimenta. Sente-se, portanto, vítima da vida, necessitando de alguma ajuda extra para, enfim, tornar-se “normal”. Na realidade, carece da capacidade de elaborar frustrações e lutos, tornando-se vítima, sim, mas de falsos alívios, vítima da droga-diabo, que lhe traz um bem-estar passageiro e uma prisão perpétua.
Por que alguém venderia sua alma ao diabo ou se auto-administraria drogas que podem matá-lo ou aprisioná-lo e denegrir sua saúde? Esta é a pergunta que me motivou a estudar o tema das adições, sobre o qual tentarei, nas páginas seguintes, ser o mais clara possível, expondo as conclusões às quais cheguei.
HISTÓRICO E CONCEITO DE ADIÇÃO (Twerski, 1996)
O tratamento da adição de forma sistemática pode ser associado ao surgimento da A.A.A. (Associação dos Alcoólatras Anônimos) em 1935. Esta organização foi criada por iniciativa de pessoas alcoólatras na tentativa conjunta de conseguir resistir ao álcool. A simetria dos participantes (não há médicos, discursos competentes ou hierarquias de saúde) é a maior peculiaridade deste grupo; todos sofrem do mesmo mal, ninguém é melhor ou pior que o outro,apenas um grupo de pessoas que se apóia mutuamente e se olha de igual para igual.
Historicamente, a prática aditiva foi considerada uma fraqueza moral, de pessoas inábeis que não conseguem lidar com a realidade. Hoje, pensamos nela como uma doença física, emocional, cognitiva e espiritual. Seu foco de estudo, antes limitado ao álcool e drogas (oral-injetáveis), foi agora expandido, incluindo outros comportamentos compulsivos[3], como por exemplo: adições à comida, ao jogo, ao sexo, às compras, ao trabalho, a pequenos furtos etc. ¾ que também induzem a alterações de humor, isolamento social, vergonha e desespero.
Atualmente compreendemos que todas as pessoas têm o potencial de se tornar aditas, pois a adição se fundamenta no desejo normal de passar pela vida com menos dor e mais prazer.
OBJETOS DA ADIÇÃO E ALTERAÇÕES DO HUMOR
São inúmeros os objetos potencialmente aditivos: álcool, cigarro, comidas, drogas, jogo, sexo etc. A escolha do objeto da adição depende de sua disponibilidade. É muito comum o adito trocar um objeto de adição por outro, como, por exemplo, trocar álcool ou cigarro por comida. Também é comum uma pessoa ser multi- adita (Black, 1990: 74).
O que todos os objetos de adição têm em comum é o fato de produzirem uma mudança de humor rápida e prazerosa, em uma destas três direções:
- Excitação – é um estado hipomaníaco onde o indivíduo se sente todo-poderoso, onipotente, completo.
- Saciedade – é um estado relaxado, pleno de uma sensação de estar alheio e anestesiado para a dor e o estresse.
- Transe – é um estado alterado de consciência que propicia as duas sensações anteriores. É meio hipnótico, cria uma realidade virtual gratificante, onde se experimenta um estado de espírito grandioso.
O fator sedutor e viciante dos objetos aditivos reside, em grande parte, no fato de eles produzirem estas alterações de humor rapidamente. Se o efeito da adição tardasse, ela não viciaria.
DESENVOLVIMENTO DE ADIÇÕES
A adição é um processo, tem um começo definido, apesar de confuso, passa por estágios de desenvolvimento e chega a um fim (que, às vezes, coincide com a morte do indivíduo).
Estágio I – Mudança Interna
A adição se inicia quando o adito, assim como todas as pessoas normais , experimenta uma mudança de humor com o objeto da adição. Só que para ele este rápido escape de uma realidade dolorosa é extremamente prazerosa e causa um impacto de intensidade incalculável. Alguns jogadores, por exemplo, começam a se viciar após a primeira partida na qual ganharam muito dinheiro.
A partir daí, uma obsessão mental começa a anteceder e gerar o comportamento aditivo (atuar aditivo ou acting out ). No estágio I o adito atua pouco e se comporta dentro dos limites socialmente aceitos. O objeto da adição é como um amigo que ajuda nas horas difíceis, despistando e/ou curando a dor.
Estágio II – Mudança no Estilo de Vida
Agora a pessoa viciada já pratica regularmente sua adição, bebendo, comendo, comprando, consumindo pornografia etc. O comportamento aditivo se ritualiza, ou seja, começa a apresentar uma sequência de atos repetitivos. Rituais preservam comportamentos, exigindo que tudo seja feito na ordem certa, caso contrário é preciso começar tudo de novo.
A personalidade original do indivíduo (verdadeiro eu) começa a mudar e se acomodar à personalidade adita. As pessoas relacionadas com o adito já percebem que algo está errado e, simultaneamente, ele começa a mentir, para se justificar ou disfarçar. A adição começa a perder o seu poder de sedução, ela ainda ajuda a evitar a dor, mas aos poucos começa também a causá-la
Estágio III – Perda de Controle Total
Neste terceiro estágio a parte adita da personalidade ganha controle total sobre o “verdadeiro eu”, que já nem luta mais. O bem-estar obtido outrora com o objeto da adição sucumbe ante o estresse causado pelas mentiras acumuladas, pela tensão nas relações interpessoais e pelo desprazer na ausência do objeto. O acting out aditivo começa a trazer mais dor do que prazer.
O adito só se sente em paz e segurança quando envolvido com seus rituais aditivos, evitando qualquer contato íntimo que possa revelar sua total deterioração. Por outro lado, ele teme ficar só, uma vez que não dá conta da própria vida. Busca parasitar familiares, manipulá-los para que satisfaçam suas necessidades e atuem como cuidadores.
Tende a ser viscoso, insistente, pedindo outra chance ou se fazendo de vítima, perdendo emprego, amigos, envolvendo-se com a lei, chegando à total degradação pessoal.
TRATAMENTO DAS ADIÇÕES
Os estudos sobre adição são pessimistas quanto a sucessos terapêuticos. O índice de 25% de curas é o máximo relatado, caso todas as seguintes estratégias terapêuticas sejam utilizados conjuntamente:
1- Medicação antidepressiva;
2- Frequência a reuniões das A.A.A.,
3- Psicoterapia familiar e
4- Psicoterapia individual.
Cada intervenção que se tira deste pacote diminui a chance de sucesso, motivo pelo qual discutiremos cada uma delas em separado.
1-Medicação anti-depressiva
Até porque muitos pacientes chegam ao consultório bem-dispostos, queixando-se de algum problema relacional, raramente reconhecendo a dependência como seu problema principal. Ao contrário, a droga ou objeto da adição é sentido como uma amiga que ajuda circunstancialmente e pode ser mandada embora quando não for mais necessária.
A depressão vem mascarada por esta automedicação e é difícil abordá-la. Temas como injustiças da vida, azar, perseguição dos outros etc. costumam ocupar as primeiras sessões. Quando a droga é abordada e a abstinência se inicia, ocorre um caos emocional, com depressões frequentes. É preciso paciência por parte do adito e da família e muita continência do terapeuta.
Os estudos mostram que muitos aditos precisam atingir o “fundo do poço”, ou seja, uma experiência-limite de destruição da própria vida (perda de emprego, do casamento, dos filhos, ser encontrado bêbado na rua, ser preso por dívidas etc.), para acreditar que não têm controle sobre a adição e começar a querer se tratar.
Esta experiência catastrófica é terapêutica porque o ser humano costuma gravitar de uma situação estressante para uma que é menos estressante. A abstinência de início é antinatural, porque é menos gratificante do que o estado de high que a droga propicia. É como pedir a alguém que jogue fora sua joia mais preciosa.
Somente após chegar “no fundo do poço” esta relação, às vezes, se inverte e a percepção do que é pior muda. O adito fica assustado com sua total decadência e começa a querer fazer tudo para evitar este final catastrófico novamente.
A crise (“experiência de fundo do poço”) abre uma rachadura no muro de proteção delirante da cognição adita. É uma rara chance de contato com a verdadeira pessoa, mas, tão logo a crise passe, cicatriza a rachadura e o sistema delirante de novo toma o controle. Infelizmente, a maior parte das famílias de aditos, pensando em proteger sua imagem, o acoberta, não deixando que ele viva esta experiência autodestrutiva. O trabalho com famílias de aditos visa conscientizá-las de que sua codependência prejudica mais do que auxilia.
Se antes da abstinência o paciente tinha a sensação de realidade injusta, falta de cor na vida, após a abstinência esta insatisfação toma proporções macroscópicas. Muitos autores indicam a medicação antidepressiva como o passo inicial no tratamento, até anterior à abstinência, acreditando que ela ajudará o adito a tolerar a dor de encarar sua realidade. Antidepressivos são muito recomendados, pois não viciam. Já os benzodiazepínicos devem ser evitados, uma vez que viciam, e é preciso muito cuidado para não substituir uma adição por outra.
A abstinência é um desafio formidável e muito difícil porque exige que:
- O adito perca a confiança de que pode controlar a adição; ele precisa saber que seu senso de realidade está distorcido e que não pode contar consigo mesmo. A experiência-limite representa um tombo doloroso e ensina mais do que mil conselhos. O terapeuta deve ajudar o paciente a chegar a esta conclusão.
- Aditos precisam submeter sua percepção à de outra pessoa para checar se o que percebe realmente existe. Isto implica deixar-se controlar por um outro alguém (marido, A.A.A., terapeuta etc.), tarefa especialmente difícil para quem se desenvolveu num ambiente disfuncional, que o adestrou no sentido oposto.
2) A.A.A. (Associação dos Alcoólatras Anônimos)
Aditos confundem e seduzem pessoas normais com sua lógica aditiva. Por isso a importância da terapia em grupo homogêneo, já que ela obriga a “um confronto entre iguais”, primeiro fator terapêutico dentre os vários descritos abaixo, responsáveis pelo sucesso das A.A.A.s no mundo todo:
a-Ver-se refletido, tal como num espelho, é extremamente terapêutico, pois permite a crítica, no outro, de aspectos que não se pode admitir em si mesmo.
b- A ausência de hierarquias superior/inferior e o fato de todos no grupo compartilharem a mesma adição e a mesma vergonha por experiências abusivas intra-familiares facilita a abordagem do próprio problema: “Sou um entre muitos, não o único fraco da turma”. Também favorece o reconhecimento de valores e mitos familiares que estimulam a adição. Por ex.: um homem só é homem se bebe; ter coisas é ter amor etc.
c- A filosofia de doze passos da A.A.A. postula o poder espiritual de um ser superior protetor e sábio (pode ser Deus, a natureza, a saúde etc.). Este viés espiritual é fundamental para abordar a “insegurança básica do adito”, naturalmente desconfiado de seres humanos e de si próprio. Já nas primeiras reuniões, os freqüentadores reconhecem que não têm controle sobre sua doença, mas que um ser superior tem e os ajudará.
d- A noção de tempo veiculada nas A.A.A.s ¾ Vive-se um dia de cada vez” e ”Só por hoje não vou utilizar o objeto da minha adição“ ¾ atende perfeitamente à enorme dificuldade do adito em retardar a gratificação. Sua lógica emocional só contém o presente, o agora! Esta concepção de tempo alterada é a responsável pelo conhecido argumento: “Eu posso parar a adição sempre que quiser” . Na realidade, pode mesmo. Todos os aditos são especialistas em parar milhões de vezes, fazer novas resoluções sobre a vida e retomar a adição depois. É um círculo vicioso que pode continuar por anos.
e- O grupo suporta recaídas e acolhe o recomeçar, sempre tão difícil quando alguém precisa superar uma adição.
f- Finalmente as A.A.s auxiliam na discriminação de rituais aditivos e estimulam que certos locais, em certas horas, sejam evitados, como, por exemplo, bares, bingos, lojas, ficar sozinho à noite em casa[4] etc.
3) Psicoterapia familiar e/ou grupos de apoio às famílias de aditos
Famílias de pessoas aditas com frequência estimulam, indiretamente, a utilização de drogas e abrigam psicodinâmicas relacionais disfuncionais, codependentes e de muito sofrimento. O estímulo ao uso de drogas pode, por exemplo, advir de hábitos familiares, aparentemente banais, tais como: uso excessivo de automedicação, beber socialmente, tabagismo, utilização de cafeína como estimulante, utilização de comida para gratificação e conforto emocionais, excesso de trabalho etc. Crianças e jovens crescem observando adultos buscarem alívio de seus conflitos e dores nessas práticas que podem se transformar em modelos futuros de conduta.
Além disto, o convívio com pessoas aditas é muito destrutivo e demanda auxílio específico. Nas A.A.A.s há grupos destinados a apoiar familiares de alcoólicos e aditos. São eles o Al-Anon (grupospara familiares e amigos de alcoólicos) e Nar-Anon (grupos para familiares de aditos do Brasil). Nesses grupos aprende-se a lidar com a psicodinâmica da codependência. Seus ensinamentos fundamentais são:
- Ninguém é responsável pela doença de outra pessoa, nem pela sua recuperação.
- Não se deve sofrer em virtude dos atos e reações de outra pessoa.
- Não se deve permitir que sejamos usados ou abusados no interesse da recuperação de outra pessoa.
- Não se deve fazer pelos outros o que eles devem fazer por si mesmos.
- Não se deve manipular as situações de forma que os outros comam, durmam, se levantem, paguem as contas, não bebam.
- Não se deve encobrir os erros ou as coisas malfeitas de outra pessoa.
- Não se deve criar uma crise.
- Não se deve impedir uma crise, se a mesma estiver no curso natural dos acontecimentos
As famílias são monitoradas para certo desligamento emocional, a fim de se protegerem e de permitir que o adito experimente o “ fundo do poço” , experiência-limite que pode, eventualmente, ajudá-lo. Temas como lealdade, vergonha, culpa, segredos são compartilhados nos grupos, e os resultados costumam ser muito bons.
Psicoterapia individual
Não é fácil abordar terapeuticamente pessoas aditas devido à impenetrabilidade desta mente dominada por uma lógica e cognição tendenciosas e por alterações na concepção de tempo.
O que conseguimos em geral é uma aparente melhora de início, seguida de recaídas na droga e abandono da terapia. Trabalhei certa vez com um homem obeso que perdeu 70 quilos em três anos de psicoterapia individual, para recuperá-los todos em dois meses e abandonar o tratamento no final. Prevenir recaídas deve ser tarefa constante, desde o início da terapia.
Acho que o psicoterapeuta que atende pessoas aditas precisa ser bastante humilde para admitir que sozinho não dará conta do recado. O prazer que a droga propicia seduz muito mais do que uma hora semanal de trabalho reflexivo. É preciso, no mínimo, a assessoria de um médico psiquiatra e a inclusão das A.A.A.s em algum momento da terapia, tanto para o paciente quanto para a sua família.
É preciso também evitar, a qualquer custo, o sedutor papel de “salvador do mundo”, controlador da ingestão da droga, da dieta, das despesas etc. ¾ sob pena de ver-se agarrado pela psicodinâmica co-dependente e perder sua operatividade. Estas são questões e práticas que podem ser discutidas na psicoterapia, mas não é função do terapeuta controlá-las.
Conquistar a confiança do adito é o primeiro passo, e isto inclui avisar que ele sentirá muito desconforto durante a psicoterapia, talvez tenha que ser medicado e, em algum momento, precisará frequentar as A.A.A.s. Se o paciente não concordar com estas condições, é melhor não aceitá-lo em psicoterapia e guardar “a única bala do gatilho” para outra ocasião, quando ele realmente quiser se tratar.
PSICODINÂMICA DAS ADIÇÕES– “VERDADEIRO EU (“EU”) X ADITO (PARTE ADITA DA PERSONALIDADE)
Na psicoterapia de aditos estão presentes, o tempo todo, duas personalidades: uma que quer muito colaborar (“EU”) e outra que, sub-repticiamente, busca boicotar, mentir e acabar com qualquer esforço para afastá-la das drogas (parte adita).
O processo de adição inicia-se fortuitamente ou a partir de algum desconforto. O objeto ou prática aditiva cria uma sensação de bem-estar, perfeição, pelo menos por um tempo. O “EU” se sente culpado, ansioso. Estas são características iniciais de alerta que, infelizmente, com o passar do tempo, deixam de atuar.
Cada vez que atua sua adição, a personalidade adita ganha um pouco mais de controle. O “EU” desaprova esta forma de agir, sentir e pensar, mas adora a mudança de humor que o objeto aditivo proporciona; faz promessas de controlar o adito com sua força de vontade e às vezes consegue, mas acaba sucumbindo à personalidade adita. Aos poucos o “EU” fica menos tolerante ao desconforto, e qualquer frustração já é vivenciada com dor, sinalizando a hora de procurar o objeto da adição.
A adição ocorre pela negação da dor emocional e por uma recusa em depender de seres humanos para obter alívio. O adito não se importa com a mulher e filhos, nem mesmo com o próprio self, que pode ficar doente e até morrer. O sonho da parte adita é escapar da dor, obter paz, perfeição sensorial e satisfação imediata; o “EU” sonha em controlar o adito. Até que o “EU” vai perdendo energia, desiste e se entrega.
Trata-se de um ciclo vicioso: quanto mais o “EU” procura alívio na adição, mais vergonha e culpa sente, mais se desestima, aumentando sua dor e desconforto iniciais. Aí de novo busca alívio na prática aditiva e o ciclo recomeça. A fiura 1 ilustra este processo:
FIG. 1 – CICLO VICIOSO DA ADIÇÃO
Para que possamos realmente começar uma psicoterapia, o paciente tem que entender este ciclo e perceber que não tem controle sobre a adição. O lado adito é muito mais forte e articulado e, mesmo em abstenção, sempre será uma ameaça para o self.
PSICODRAMA E ADIÇÕES
Estudos com animais e pacientes traumatizados (Mary, 2004: 30; Van der Kolk, Mc. Farlane & Weisaeth,1996) sugerem que psicoterapias vivenciais são mais efetivas do que terapias apenas verbais.
A resposta imediata a uma situação estressante[5] dispara mecanismos de reação do sistema nervoso simpático, conhecida como “reação de alerta”. O organismo animal se prepara para lutar ou fugir ( Walter Cannon 1939 Paul MacLean 1952) . Impedido de reagir o cérebro animal funciona através de mecanismos arcaicos (Levine,1999 ) provocando uma resposta de congelamento das funções vitais Este artifício permite que o animal, fingindo-se de morto, consiga às vezes ser abandonado pelo predador, ou, no mínimo, obtenha certo tempo para bolar outra estratégia de fuga.
Salvo algumas diferenças, o mesmo ocorre, com o animal humano. Quando somos impedidos de reagir nosso cérebro funciona com sua camada reptiliana e o congelamento das funções vitais se manifesta através de uma respiração superficial e músculos endurecidos, simulando rigor mortis, e uma mente anestesiada, como se a pessoa fosse um zumbi.
Só que, ao contrário do animal que, passado o perigo, descongela por meio de um tremor corporal observável, o ser humano intermedeia estas funções físicas com pensamentos, sentimentos, emoções, lealdades invisíveis etc., produtos das duas outras camadas cerebrais que possui. Fica faltando uma ação de combate, de retomada do controle, que às vezes só é conseguida muitos anos depois, pela repetição ativa da violência ou abuso, desta feita no papel de abusador ou daquele que tem o controle (muitas adições são tentativas desastradas de simular controle).
A dramatização fornece a oportunidade desta ação faltante, permitindo aos músculos uma descarga segura desta necessidade corporal de retomada de controle. Saliento que o psicodrama foi uma das primeiras terapias corporais, e Moreno já dizia que o corpo se lembra daquilo que a mente esquece, sobretudo fatos que se passam nos primórdios da vida infantil, antes até do surgimento da linguagem. A melhor forma de recapturar memória de ações é por meio de métodos expressivos, que usam a pessoa inteira (corpo e mente) na ação.
A seguir descrevo, ilustrando com alguns casos[6], de que forma utilizo o psicodrama com este tipo de problemática.
NAS ENTREVISTAS
Os pacientes que nos procuram não sabem o que é psicodrama, e muitos nem mesmo sabem o que é psicoterapia. É bastante provável que a grande maioria das pessoas leigas ache que apenas deva estar conosco e contar sua vida para que possamos lhes apresentar a solução para seus problemas mais íntimos. Além disso, há certo temor de nossa profissão, pois somos vistos como espécies de bruxos que podem ler almas, ou como pessoas arrogantes que se sentem superiores às outras.
Acredito que precisamos auxiliar nossos pacientes a saber quem somos, a ter confiança naquilo que fazemos, bem como ajudá-los a conhecer nossos instrumentos de trabalho. Confiança e conhecimento se constroem aos poucos, motivo pelo qual realizo no mínimo três entrevistas antes de aceitar um cliente para um contrato de psicoterapia.
Faço uma ou duas entrevistas verbais, um átomo social ¾ que introduz o psicodrama ao paciente ¾ e uma entrevista final devolutiva, onde sumarizo meu parecer e estabeleço o contrato de trabalho. Especificamente com o paciente adito realizo, quando possível, além das entrevistas verbais, três átomos sociais diferentes: um átomo social tradicional; um átomo social durante a adição (Figura 2); um átomo familiar de adições ou genograma das adições. (Figura 3).
Átomo social
Objetivos: explorar o contexto sociométrico no qual o paciente está inserido e treino para futuras dramatizações. É importante saber quem são seus egos-auxiliares naturais, aqueles que poderão apoiá-lo caso esteja deprimido, e, também, que espaços sociométricos estão faltando em seu átomo social. Às vezes percebemos uma pessoa adulta cercada da família primária, mas sem amigos, como se fosse uma criança aos cuidados de sua família.
Fazer um desenho do átomo social do cliente no seu protocolo e comparar o átomo social na entrada e na saída do processo terapêutico pode ser muito útil para a avaliação da eficácia do processo terapêutico.
FIG. 2 – ÁTOMO SOCIAL DURANTE A ADIÇÃO
GENOGRAMA DAS ADIÇÕES
Objetivos: pesquisar a presença de hábitos aditivos, compulsivos e/ou abusivos, geradores de vergonha no átomo familiar do paciente.
Ficha técnica: pede-se ao paciente que dê uma nota de 1 a 10, indicando a presença dos seguintes comportamentos em alguma pessoa de sua família: adições (bebida, drogas, compras, comida, trabalho etc.); perfecionismo; procrastinação[7]; raiva; vitimização, depressão, compulsão, suicídio ou qualquer outro hábito disfuncional.
FIG. 3 – GENOGRAMA DAS ADIÇÕES
Tanto o átomo social durante a adição quanto o genograma das adições auxiliam o terapeuta e o paciente a focalizarem a extensão dos danos e sua influência familiar; também ajudam a prevenir recaídas, pois concretizam, de forma até óbvia, as pessoas e situações que o adito deve evitar se não quiser recair na adição.
NO INÍCIO DA TERAPIA – discriminar o Verdadeiro Eu do Adito
a) Utilizando máscaras
V., 35 anos, descasada, obesa, dois filhos, é proprietária de uma empresa que enfrenta sérios problemas administrativos. Queixa-se de crises de bulimia noturna[8] que não consegue controlar. Nessas ocasiões, devora tudo o que aparece em sua frente, salgados, doces, frutas, sorvete etc.
“São momentos de loucura gastronômica”, diz ela, “engordo tudo o que perdi com dieta e exercícios.”
Logo nas primeiras sessões disse que gostaria de trabalhar[9] “esta gorda louca que aparece de madrugada”. Pedi-lhe que montasse a cena onde aconteceu a última aparição da “louca”. Ela dispôs a cozinha de sua casa, na noite anterior. Estava sozinha, procurando dentro da geladeira e no armário tudo o que pudesse colocar para dentro.
Montamos detalhadamente o espaço da cozinha, e antes de começar a cena pedi-lhe um solilóquio, um minuto antes de ir para a cozinha:
(em solilóquio, um minuto antes): Estou triste, sozinha e com medo do que vai acontecer amanhã (refere-se a um problema grave na empresa).
T.: Ok, agora continue o solilóquio, mas vá para a cozinha, até a “gorda louca“ aparecer.
V .(em solilóquio): Quero dormir, apagar, não quero mais pensar o que será amanhã. Neste momento pára e diz para T.: A “gorda louca” começa a abrir a geladeira.
T.: Muito bom! Congela um pouco e escolhe uma máscara para ser esta “gorda louca”. Vai até a parede onde estão as máscaras penduradas e, cuidadosamente. pega um rosto gorducho, com bochechas vermelhas e pena na cabeça e diz: É esta aqui, sem dúvida!
T.: Vista ela um pouquinho e olha de longe esta cena: V. está sozinha, preocupada, triste e vai até a geladeira (T. coloca uma almofada para marcar o papel da paciente) e aí você aparece, entra em cenae fala com V.
(com a máscara no papel de gorda louca): Vim te ajudar, querida (de um jeito bem espalhafatoso), sou sua amiga querida, sempre te entupo de algo e faço dormir, vem que eu vou te ninar.
T.: Troque de lugar um pouco, tire a máscara (T. coloca a máscara sobre a almofada e V. assume seu próprio lugar à porta da geladeira).
(como V. para a “gorda louca”): Vai embora de mim, você não me ajuda. Eu preciso emagrecer para mudar minha vida e você não deixa, continuo gorda e sozinha, vai embora, eu te odeio!
Depois de mais algumas inversões de papel para aprofundar as características destes aspectos cindidos de V., T. pede a V. que saia da cena e observe, enquanto dispõe duas almofadas, uma com a máscara, outra sem, e repete o diálogo rapidamente (para não desaquecer o paciente). Depois diz:
“Estas duas partes são tuas V. , uma te traz para terapia, a outra te propõe a adição. Precisamos conhecê-las melhor e é o que faremos daqui para frente”.
b) Executando duplos da parte adita
É muito útil executar duplos da parte adita, ressaltando sobretudo o caráter paradoxal deste lado da personalidade.
Gorda louca: Traga-me sua dor, eu vou te dar alívio.
como duplo (de V. no papel de gorda louca): Traga-me sua dor, eu te darei a ilusão de alívio.
Gorda louca: Eu te farei livre.
como duplo (de V. no papel de gorda louca): Serei o seu único patrão.
Gorda louca: Fique um tempo comigo, você pode confiar em mim. Em ninguém mais você pode confiar.
como duplo (de V. no papel de gorda louca): Passe um tempo comigo e eu te ensinarei a não confiar em ninguém.
Gorda louca: Eu te ensinarei uma forma de não encarar os problemas.
como duplo (de V. no papel de gorda louca): Você se livrará dos problemas por um tempo curto, mas eles não irão embora.
Com o tempo T. pode propor que o próprio paciente faça o duplo da parte adita, de forma a introjetar um raciocínio menos viciado pela lógica adita.
c) Escrevendo cartas
Escrever cartas é uma ótima forma de discriminar partes ¾ o escritor e o leitor. É meu recurso estratégico predileto para manter o aquecimento entre as sessões. No caso da adição, podemos sugerir que as cartas sejam escritas em várias direções:
- Da parte adita para o self;
- Do self para a parte adita;
- Do corpo para a parte adita;
- Do objeto da adição para o self;
- De vários integrantes do átomo social para o self;
- Da parte adita para as relações familiares mais íntimas etc.
d) Construindo metáforas da parte adita
42 anos, homossexual, homem extremamente bem-sucedido profissionalmente, tem um parceiro com quem mora há 20 anos. É “sexo adito”, apresentando compulsões eventuais de sair de madrugada, ter relações sexuais com pessoas desconhecidas, sem medidas de segurança.
“Como um vampiro à caça de sangue”, diz espontaneamente, referindo-se a esta parte ego- distônica de sua personalidade. Pedi-lhe que se esquecesse de si e jogasse o papel do vampiro, contando-me sua história, com início, meio e fim.
“Eu era um jovem bonito diz, quando uma noite, andando despreocupadamente pela rua, fui atacado e mordido por um vampiro. Perdi a liberdade de ser quem eu queria e num vampiro me transformei. Ser vampiro não é uma escolha, é o meu destino.”
Peço-lhe para mostrar, com seu corpo, de que forma se sente como vampiro. Ele se dobra inteiro e diz: “Envergonhado”.
Chego mais perto, ponho minha mão em suas costas e lhe pergunto: ”Quando, antes, você já se sentiu assim, envergonhado?”. “Quando meu pai meu surrou na frente de todo mundo”, responde, referindo-se a uma cena ocorrida aos cinco anos de idade. Muitas vezes, ao longo de sua psicoterapia, trabalhamos esta cena para compreender o lado vampiro de sua personalidade.
Como vocês podem ver, metáforas são ótimos recursos para trazer à tona mundos cindidos, partes não assumidas da história de vida e do self dos pacientes. Permitem múltiplos usos na terapia, podendo ser trazidas espontaneamente, como no exemplo citado, ou construídas por meio da concretização de alguns comportamentos, sensações etc.
e) Cadeira vazia
O terapeuta coloca uma cadeira vazia na frente do paciente e sugere que ele imagine estarem lá sentadas pessoas ou partes suas com as quais deseja trabalhar. No caso da adição, a própria droga pode estar lá corporificada, bem como parceiros de adição, a parte adita da personalidade que domina o self, metáforas, sonhos etc.
O jogo de papéis se faz com a mudança de posição do paciente, ou seja, o paciente joga um papel, depois troca de cadeira e joga o outro; é um desempenho de papéis sem ação dramática. Essa técnica pode ser utilizada como um aquecimento inicial, seguido de um trabalho em cena aberta, ou como única técnica dentro de um trabalho psicodramático.
Gosto de pedir ao paciente para conversar com a droga, invertendo papéis e, depois de algum tempo, ser o duplo deste objeto ou prática aditiva, de forma a exteriorizar o não-dito, a consequência futura, e enfim, poder se apropriar, e não dissociar, da experiência integral.
O terapeuta pode jogar papéis também, se quiser, ou ficar apenas observando, entrevistando ambas as partes em confronto e apresentando um ponto de vista que não foi abordado.
(40 anos, fuma maconha o dia inteiro, no carro, no trabalho, na escola etc.) para a cadeira vazia onde a maconha está sentada: Eu preciso de você.
como maconha para C.: Eu também, somos um par inseparável.
para maconha: Mas eu estou perdendo aulas e posso perder o emprego.
como maconha para C.: Imagina, isto é papo deles, a gente saca melhor tudo, é mais profundo.
para maconha: Que nada, eu nem me lembro o que tenho que redigir hoje. Tenho que perguntar para o Luís.
como maconha para C.: Aquele babacão, C.D.F…
pede a C. para se levantar, coloca uma almofada no lugar de C. e diz: “Agora vou ser a maconha e você, fica atrás de mim, explicitando o que eu – maconha não estou dizendo”.
como maconha para almofada como C.: Luís é um babacão, cara de bocó, não sabe de nada.
como duplo de maconha: Fica só comigo, eu sou sua única amiga, não estude, não namore, só comigo você será feliz.
como C. para T.: É igual minha mãe que não gosta de nenhuma namorada minha. Parece que quer me segurar.
pede então uma cena recente com sua mãe na qual ela mostra este aspecto dominador, e a sessão continua com uma clássica montagem de cena, utilizando as técnicas corriqueiras do psicodrama.
Enfim, há muitas formas de se favorecer a discriminação destas partes em conflito, e acho extremamente útil passar um tempo da terapia processando esta cisão.
ADENTRANDO A PSICODINÂMICA DO PACIENTE – TRABALHO COM A CENA REGRESSIVA (Cukier, 1998: 67)
O psicodrama intrapsíquico (Pitzele, 1992) com cenas regressivas ou infantis é um poderoso recurso para se trabalhar com adições. Seu objetivo básico e ressignificar questões relacionadas à autoestima , discriminar dores de defesas infantis e avaliar a função do comportamento aditivo atual na história de vida do paciente.
No meu livro Sobrevivência Emocional descrevo em detalhes o manejo da dramatização com cenas regressivas. A Figura 4 mostra, esquematicamente, as fases que precisam ser percorridas neste trabalho, e a Figura 5 traz um roteiro para entrevistar o paciente em seu papel infantil.
FIG. 4- ESQUEMA DO TRABALHO COM CENA INFANTIL
FIG.5-ENTREVISTA NACENA INFANTIL
Muitas sessões são efetuadas para processar o material obtido numa cena traumática infantil. Busca-se a comunicação da parte adulta da personalidade com a parte infantil, de forma a efetuar uma espécie de negociação e “redecisão”. A parte adulta do paciente precisa compreender esta criança interna, seu pensamento concreto, negociar com ela e obter alternativas que não comprometam sua saúde e felicidade na vida atual.
Uma dramatização com a cena regressiva esgota-se apenas quando o cliente:
Revive a dor da cena infantil;
Consegue entender como fez para sobreviver;
Percebe os problemas atuais causados por suas defesas infantis;
Treina novas formas de ação adultas e apropriadas, modificando sua conduta atual.
Obviamente, uma sessão de 50-60 minutos não pode dar conta de todos esses aspectos. Já fiquei cerca de três meses trabalhando uma mesma cena até compreender todas as conexões. Este trabalho representa o centro do furacão. É a bala mais importante do nosso gatilho, e não devemos queimá-la em vão, indo rápido demais.
Há muitas formas para terminar uma sessão no meio deste trabalho, deixando certos ganchos para reaquecer o paciente e continuar na próxima semana. Trata-se de tarefas estratégicas, tipo lição de casa, como por exemplo:
Traga escrito para a próxima sessão, com detalhes, o que se passou nesta cena e, se tiver uma foto sua dessa época, traga-a também;
Escreva uma carta para você mesmo quando criança. Cuide para escrever em linguagem infantil, pois quem vai ler é uma criança com menos de oito anos;
Faça uma colagem ou ache uma foto na internet do personagem que carrega sua defesa infantil;
Tire uma foto desta cena numa Polaroid imaginária e continuaremos com ela na próxima semana;
Escreva uma carta para os personagens desta cena (pai, mãe, irmão etc.). O que você diria hoje para eles a respeito do que acontecia na cena infantil?;
Imagine se o maior advogado do mundo pudesse tomar a defesa desta criança. Qual seria o seu argumento?;
O que a criança que você foi lhe pediria hoje, se pudesse?
Às vezes o cliente não quer continuar o trabalho na semana seguinte porque tem algo mais urgente para trabalhar ou porque não se sente preparado para entrar na velha angústia. A tarefa fica, então, adiada para quando ele puder retomá-la. Outras vezes o cliente não faz a tarefa, esquece ou não quer fazê-la sozinho. Podemos ajudá-lo a executá-la durante a sessão ou deixar que ele a traga na próxima vez. Sempre é bom discutir por que a tarefa não foi feita, pois ela é um acordo com o terapeuta que foi firmado e quebrado.
A seguir, descrevo um exemplo onde utilizo está técnica com um paciente adito de compras:
A., 35 anos, compulsivo por compras, chega a gastar dinheiro que não tem, adquirindo coisas que muitas vezes não usa. Em determinada sessão diz que quer trabalhar a “fissura que sente para ir a determinada loja em São Paulo, conhecida pelos seus produtos sofisticados, internacionais e extremamente caros”.
para A.: Ande pela sala e dê uma espreguiçada em seu corpo e vá pensando em quando sentiu esta fissura mais recentemente.
A.: Ontem depois de caminhar pela manhã.
T.: Onde você estava?
A.: Quando começou a fissura?
T.: É.
A.: Acabando de me pentear, depois do banho.
T.: Vamos montar o seu banheiro, o espelho… Onde é a porta deste aposento? [10]
dispõe pacientemente as peças do banheiro, o armário, o espelho etc.
T.: Comece a se pentear e faça um solilóquio.
A.: Hoje estou bem, devo caber naquela calça de couro… Preciso comprá-la, vou até a loja, compro em dez vezes, posso até usar hoje à noite na festa da C.
T.: Respire fundo e agora feche os olhos e entre em si mesmo. Procure o que sente no seu corpo quando começa a pensar nisto.
A.: Minhas mãos tremem e transpiram, fico excitado.
T.: Deixe que esta excitação tome conta de seu corpo todo.
Começa a dar pulinhos, cada vez mais alto, ri…
T.: Muito bem, mais alto, pule forte… O que lhe lembra esta alegria?
(imediatamente): Meu pai vindo me buscar de 15 dias em 15 dias. Eu o esperava na porta, íamos ao restaurante, ao boliche, ao shopping. Ele comprava tudo o que eu queria. Ele tinha mais grana que minha mãe. Minha mãe inclusive falava para eu pedir as coisas para ele.
T.: Algum dia em especial?
A.: Muitos todos iguais, eu tinha pai a cada 15 dias.
T.: Vamos montar um desses dias aqui… Lembre de um momento desses dias.
A.: Comprando meu autorama. Era uma loja grande de brinquedos lá no alto da Lapa… Nós já tínhamos ido ver noutra semana… Fomos de manhã, no sábado. Depois montamos na casa dele, montamos a tarde toda, eu e ele estávamos muito felizes.
T.: Respire fundo A., feche os olhos, veja esta cena dentro de você e especialmente olhe para o seu rosto, seu corpo, sua idade. Quais são suas emoções neste momento?
A.: Alegria. Alegria!
T.: O que você precisava nesse momento da sua vida?
A.: Precisava que este momento não acabasse e que não fosse tão raro (chora)… Depois ele morreu quando eu tinha 12 anos e acabaram os 15 dias.
T.: Respire fundo e volte para a cena dentro de você… O que você está aprendendo, neste momento da sua vida, que jamais esquecerá?
A.: Eu gosto do meu pai, mesmo que minha mãe não goste (chora); ele é bom para mim, ele gosta de brincar comigo (chora).
(indo para o canto da sala aonde deixou minimizada a cena do banheiro e da fissura de compras): Olhe este homem de 35 anos aqui… Ele precisa ir a esta loja comprar este objeto caro… Você tem algo a falar para ele, você de nove anos, neste exato minuto?
A.: Seu pai não está lá, seu idiota (chorando)... Você só vai se ferrar.
T.: Volte ao seu papel adulto A., em frente ao espelho… Olhe um minuto para este menino (aponta para a cena infantil na qual almofadas marcam os papéis)... Você acha que poderia entrar em contato com ele durante a semana, escrever-lhe uma pequena carta? Sinto que vocês precisam conversar. Parece que há alguma relação entre pai, autorama, fissura, calça de couro, loja chique… Pense nisso e vamos continuar na próxima sessão.
Na sessão seguinte, aquecidos pelo bilhete que o paciente, em seu papel adulto, escreveu para seu menino, retomamos na cena da morte do pai.
O paciente com 12 anos estava em frente caixão do pai, triste e bravo, pois a mãe e a nova mulher do pai criam um clima tenso no enterro.
para A.: O que você precisava neste momento da sua vida?
A.: Que minha mãe parasse de pensar em si e pensasse em mim, ficasse comigo.
T.: O que você aprende por não ter o que precisava?
A.: Tenho que me virar sozinho a partir de agora, ninguém mais vai se importar comigo.
T.: O que isso quer dizer para um menino de 12 anos?
A.: Que tenho que procurar ganhar dinheiro e me dar tudo o que quiser.
para T. (sai do papel infantil e fala enquanto adulto): Comprar tudo o que quero é uma forma de fazer isto, não é?
T.: Parece que sim. Comprar tudo o que quer representa ter um pai dentro de si, e é isto o que precisamos mudar.
4- FINAL DA PSICOTERAPIA― SEDIMENTANDO NOVOS COMPORTAMENTOS E NOVA SOCIOMETRIA
O comportamento aditivo é uma conserva comportamental segura, e previsível, mas disfuncional e pouco criativa. O psicodrama pode fazer muito para desenvolver a espontaneidade do paciente, ajudá-lo a treinar novas condutas e se arriscar em novas sociometrias.
Técnicas como o role-playing, dramatizações de cenas temidas e jogos dramáticos auxiliam a revelar medos não conscientizados, comportamentos não desenvolvidos, papéis não jogados.
Adoro definir o meu consultório como um laboratório privilegiado e mágico, aonde saem pombos e lenços coloridos de um cartola preta , mais tarde transformados em sonhos novos , projetos futuros e novas relações.
PALAVRA FINAL ― RECAÍDAS- RELAPSOS
Recaídas na adição são absolutamente normais. É recomendável que o terapeuta informe seu paciente que já espera por isto e que não deixará de ajudá-lo. Existe uma tendência, quase generalizada, de os pacientes largarem o processo terapêutico depois de recaídas. Isto acontece porque além de ficarem decepcionados com a terapia, sua autoestima fica muito baixa. Apresentam pensamentos catastróficos, de ruína pessoal, que, por seu turno, os leva de volta ao ciclo da adição.
É preciso prestar atenção nas situações de recaída porque elas se repetem e porque podemos prognosticá-las, caso observemos alguns indicadores. São sinais de possível relapso: o cliente faltar à terapia, apresentar muito remorso e vergonha, começar a culpar os outros por seus problemas, vitimizar-se, ficar devagar e repetitivo etc
Quem recai não recomeça do zero, pois já tem um caminho andado e precisa apenas recomeçar o controle. Fazer um prognóstico de recaídas logo no início do tratamento e prestar atenção em situações da vida que as favoreçam pode abreviar a retomada de controle.
Voltar à A.A.A. é também muito difícil na segunda vez, sobretudo por vergonha do grupo e por desacreditar na capacidade terapêutica dos encontros. A terapia individual precisa auxiliar nesse processo de retomada das reuniões grupais.
O compartilhar do terapeuta de seus próprios erros é desejável, pois pode dar um modelo para o paciente: “Se o meu médico ou terapeuta erra, pede desculpas e começa tudo de novo, eu também posso”. Erros não demolem uma pessoa, e o melhor a fazer é admiti-los prontamente e corrigir logo que possível, para que as negações e mentiras não se acumulem.
RECUPERAÇÃO
Recuperar-se de uma adição é quebrar a dependência interna do ritual aditivo e descobrir uma nova forma de viver, mais vulnerável a medos, conflitos e relações. Mudar a autoimagem é um dos aspectos mais difíceis, e a vergonha pelas ações cometidas no passado pode arruinar a recuperação. É preciso auxiliar o cliente a transformar a vergonha em culpa, gerando, então, ações reparadoras.
Aprender a admitir erros é uma das metas da terapia. Costumo ressignificar o que os pacientes entendem por natureza humana dizendo-lhes que “ser humano” é cometer erros e procurar acertar da próxima vez. Além do mais, nossa vulnerabilidade admitida gera um benefício secundário, que é estimular a empatia das pessoas e trazê-las para mais perto de nós. Pessoas onipotentes, que sabem tudo e não precisam de ajuda, em geral ficam sozinhas. É por meio de nossa natureza humana falha que nos conectamos com outros seres humanos.
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[1]. Não se enganem quanto à minha capacidade de ler a obra de Goethe em sua forma original. Realmente não possuo tal erudição . O drama de Fausto, porém, sempre me fascinou, e pude conhecer seu conteúdo em filmes, novelas, internet, onde ele é popularmente descrito.
[2]. “Verdadeiro eu” é utilizado aqui no sentido da personalidade existente antes da adição e “personalidade adita” será o termo utilizado para a personalidade estruturada durante o processo aditivo. Propositadamente não utilizei os termos ego nem self, para não adentrar as definições psicanalíticas e acadêmicas sobre este tema.
[3]. Obsessões e compulsões estão relacionadas e, em geral, vêm acompanhadas. Ambas se referem a pessoas consumidas por algo irracional. Na obsessão, trata-se de uma ideia irracional e na compulsão, de um ato irracional. Obsessões e compulsões são como sugestões pós-hipnóticas; têm uma urgência irresistível. Alguns autores argumentam, com propriedade, que comportamentos compulsivos são ações utilizadas para que a pessoa se mantenha ocupada e não experiencie sentimentos de ansiedade, tédio, depressão e angústia Elas fogem de si mesmas ocupando-se com algo além de si.
[4]. A maioria dos obesos, bulímicos e compulsivos come à noite e escondido, sem que ninguém veja.
[5] Situação estressante significa qualquer situação que leva o indivíduo a um estado de desespero, seja por estar lutando para preservar sua vida ou a de outrem que lhe é importante.
[6] Todos os nomes dos pacientes são fictícios e os próprios pacientes são mesclas de muitos casos. Utilizarei T. e a inicial fictícia do nome do paciente para designar terapeuta e paciente nos exemplos citados.
[7] Procrastinar: hábito de deixar sempre para depois tarefas que devem ser feitas agora.
[8] Bulimia nervosa: caracteriza-se essencialmente pela apresentação de compulsões periódicas e métodos compensatórios inadequados para evitar ganho de peso( purgação, jejum ou exercícios exagerados). Além disso, a auto-avaliação dos indivíduos com bulimia nervosa é excessivamente influenciada pela forma e peso do corpo
[9] Sempre pergunto, no começo das sessões, o que os pacientes querem trabalhar naquela sessão. Acredito que esta simples pergunta estimule a autonomia e responsabilidade do cliente pelo tempo que passaremos juntos.
[10] Sempre começo a montagem da cena pela porta de entrada do local onde ela acontece. Auxilia-me a definir o espaço e aquece o paciente porque ele percebe que eu realmente sei onde estão os móveis, janela etc.
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ESTRESSE PÓS -TRAUMÁTICO (TEP): NOVIDADES,TRATAMENTO E PSICODRAMA
Sumário: O estudo das reações humanas ao trauma tem crescido substancialmente nos últimos anos englobando, não apenas as Histéricas de Freud, mas também os combatentes de guerras, sobreviventes de tragédias naturais e as vítimas de abuso infantil e violência doméstica.
Surgiram, pela ampliação do campo de trabalho, inúmeras terapias novas, cada uma reclamando maior eficiência e rapidez que a outra, fazendo com que os terapeutas das velhas escolas psicodinâmicas pareçam dinossauros antiquados e sem recursos úteis no tratamento destas questões.
Este artigo visa mostrar as contribuições contemporâneas de colegas psicodramatistas internacionais para lidar com situações de Estresse pós-traumático, e estimular o desenvolvimento de estudos controlados estatisticamente que possam mostrar a riqueza do nosso instrumental teórico e prático .
Unitermos: Desordem do Estresse Pós Traumático, trauma, psicoterapias, psicodrama, eficácia terapêutica.
Summary: The study of human reactions to trauma has grown substantially in recent years covering not only Freud’s hysterical clients, but also the combatants of many wars, the survivors of natural disasters (earthquakes, tsunamis, etc.) and the victims of child abuse and domestic violence.
Trauma work field was expanded and new therapies have emerged, each more efficient and faster than the other, causing the psychodynamic therapists appear like antiquated dinosaurs with no useful resources to deal with these issues.
This article aims to show the contemporary contributions of international psychodrama-tists to deal with post-traumatic stress disorder, and encourage the development of controlled studies to show statistically the richness of our theoretical and practical body of knowledge.
Uniterms: Pós-Traumatic Stress Disorder, Trauma, Psychotherapies, Psychodrama, Therapeutic efficiency.
INTRODUÇÃO
O estudo das reações humanas ao trauma tem crescido substancialmente nos últimos anos. O que antes parecia um evento raro, circunscrito às histerias estudadas por Freud [1]( 1914:1901), ressurge de forma ampliada nos sintomas do estresse pós traumático de combatentes das inúmeras guerras e guerrilhas espalhadas pelo globo, em sobreviventes de tragédias naturais – terremotos, tsunamis etc. − e nos sintomas generalizados de ansiedade das vítimas de abuso infantil e violência doméstica.
Ganhou-se um entendimento maior de como o cérebro humano funciona em situações extremas e, apesar das diferentes origens do trauma, pessoal ou coletivo, os sintomas presentes na clínica individual e nos campos de guerra, têm enormes semelhanças entre si: estados dissociativos, fragmentação da personalidade, desordens afetivas e ansiosas, somatizações, tendências ao suicídio, pensamentos e imagens intrusivas, repetição de situações de perigo e abuso pessoal, pesadelos, insônia, etc.
Houve uma ampliação do campo de trabalho na área do trauma , surgindo inúmeras terapias novas, cada uma reclamando para si, eficiência rápida e comprovada, fazendo com que terapeutas das velhas escolas psicodinâmicas pareçam dinossauros antiquados e sem recursos úteis no tratamento destas questões.
Eu nunca acreditei em soluções rápidas mas sempre desejei que elas existissem, e o dinossauro dentro de mim fica muito ouriçado com as novidades. Enfim, este artigo visa discutir estes temas e levantar algumas outras questões, especificamente, como o Psicodrama ‒ enriquecido de conhecimentos vindos destas novas práticas terapêuticas ‒, pode ser utilizado para conter a gama de sintomas apresentados pelos pacientes traumatizados no passado, auxiliá-los a re-ganhar segurança no momento presente, e a se reconectarem com o mundo à sua volta prosseguindo seu desenvolvimento.
BREVE HISTÓRIA DO DIAGNÓSTICO DE TRAUMAS PSÍQUICOS
O ser humano sempre esteve exposto a traumas, ou seja, situações em que a vítima tem que se submeter a uma força esmagadora. Ataques, quaisquer que sejam – mamíferos predadores gigantes, terremotos, atentados terroristas, abusos sexuais, físicos e emocionais na infância – são exemplos de situações traumáticas que, apesar de sua natureza desigual, causam, sequelas psicológicas similares nos sobreviventes.
A descrição do trauma e seus efeitos psicológicos é bem antiga. Na Grécia Clássica, a Ilíada de Homero nos oferece um quadro preciso de sintomas semelhantes àquilo que hoje designamos por “estresse pós-traumático” (SHAY, 1994)[2]. Entretanto, a compreensão da sua etiologia é inconstante, feita por ciclos, como se a ciência e a sociedade compreendessem, mas negassem ou esquecessem o que compreenderam muitas vezes, ao longo dos três últimos séculos (Herman,1992). Também inconstante é a utilização de terapias, por exemplo a hipnose, que pareceu, em algum momento a “solução para o problema”, e no momento seguinte, uma terapia menor, menos eficiente.
O primeiro ciclo de compreensão ocorre nas duas últimas décadas do sec. XIX, quando expressões como choque nervoso e histeria, começaram a ser usadas para descrever situações clínicas onde somatizações estavam presentes. Note-se o lugar impotente da mulher na sociedade patriarcal. Poucos estudos envolviam a saúde de mulheres e crianças, que começaram a ter um papel protagônico, graças às somatizações e sintomas estranhos que apresentavam.
Jean-Martin Charcot (1825–1893), neurologista francês, fazia demonstrações públicas utilizando a hipnose com histéricas, e seu aluno, o psicólogo Pierre Janet (1859–1947), começou a destacar a etiologia psicológica do quadro histérico. No final do séc. XIX, Sigmund Freud (1856–1939), em colaboração com Breuer, postula inicialmente, que essa neurose seria causada por lembranças reprimidas de abusos sexuais sofridos na infância. Num segundo momento porém, e diante da impossibilidade de admitir que toda a sociedade masculina vienense era perversa e abusava de suas mulheres e crianças, Freud mudou de ideia e atribuiu os sintomas da histeria à fantasia sexual da criança, criando a “Teoria da sedução infantil”[3].
O segundo ciclo de estudos sobre o estresse pós-traumático ocorreu entre 1914 e 1918, por ocasião da Primeira Guerra Mundial quando mais de 8 milhões de pessoas morreram e o império europeu foi destruído. Estima-se que 40% das forças militares inglesas apresentaram “colapsos mentais” que, entretanto, foram escondidos da população geral, por medo da desmoralização das tropas. Fazia-se necessário encontrar um diagnóstico e tratamentos eficientes, para que os homens afligidos voltassem ao campo de batalha rapidamente.
Inicialmente pensou-se que haveria uma causa física para esta doença, “choque de bombas” ( MYERS, 1916) [4], tese que não se sustentou por muito tempo, voltando-se a utilizar o velho recurso de conotar de covardes, fracos e inválidos morais os soldados doentes, que mereceriam punições, xingamentos, choques elétricos e corte marcial ao invés de tratamento (YEALLAND, 1918)[5]. Lembrem-se que as histéricas também foram primeiramente consideradas loucas, fracas e bruxas. Aos poucos foi sendo provado que bons soldados também poderiam ficar doentes e outras psicoterapias foram propostas. Alguns anos após o fim desta guerra porém, o interesse social e médico pelo tema decresceu, apesar dos hospitais de veteranos estarem cheios de soldados com sequelas .
Um terceiro ciclo de estudos do trauma se iniciou entre 1939 a 1945, por ocasião da segunda Guerra Mundial e da Guerra do Vietnã (1955 a 1975). Em 1941 Abram Kardiner, psiquiatra americano, escreve The Traumatic Neuroses of War[3], aonde reconhece o paralelo entre a “Síndrome da Guerra” e a histeria, inclusive a forma depreciativa como o mundo científico encarava as duas patologias: os pacientes agem como se a situação traumática original ainda existisse e buscam desenvolver condutas de autoproteção que não puderam ter na ocasião original” (p. 82).
Com o advento da Segunda Guerra Mundial houve uma reedição do interesse na neurose de guerra pois era necessário curar os soldados e fazê-los voltar rapidamente para a frente de batalha. Já se reconhecia que qualquer soldado pode apresentar um colapso. Os tratamentos utilizados eram a hipnose, o grupo terapêutico e a narcossíntese (SHALEV & URSANO, 1990, apud VAN DER KOLK, WEISAETH, et al., 1996, p. 59). Também começaram a ser reutilizados tratamentos antes usados com as histéricas como a “cura pela fala”, a rememoração de experiências traumáticas e a catarse .
Estudos longitudinais sobre os efeitos do trauma de guerra nos combatentes só foram realizados após a guerra do Vietnã e motivados pelos próprios soldados descontentes com a guerra (Herman pág. 26). Uma organização chamada Veteranos do Vietnã contra a Guerra , formada por soldados reconhecidos por sua capacidade e coragem, devolveu suas medalhas de guerra e expôs , na mídia, para o grande público, os horrores e crimes que cometeram durante a guerra. Começaram a organizar grupos rápidos, entre colegas, para compartilhar os traumas, coordenados por psiquiatras simpatizantes que ofereciam assistência profissional. Foi o testemunho destes soldados que mostrou os efeitos perenes dos trauma na vida dos indivíduos.
Não dá simplesmente para curar rápido ou esquecer quando a guerra, a infância abusiva ou a catástrofe termina. As marcas e efeitos deletérios no organismo humano continuam para sempre, nunca mais a pessoa funcionará como antes. Esses soldados lutaram para não serem esquecidos ou desmerecidos, insistiram nos seus direitos e dignidade. Judith Herman cita um soldado, Michael Norman, que disse: “ Nossa raiva é igual à raiva de qualquer homem civilizado a quem se manda matar em nome da virtude!”
Em 1980, a Síndrome do Trauma Psicológico virou um diagnóstico real, sendo incluída, pela primeira vez, no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria. Atualmente chamamos o conjunto de sintomas que compõe esta síndrome de “Estresse Pós-Traumático – TEPT.(DSM-V, p. 271)[6].
MOVIMENTOS FEMINISTAS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROTEÇÃO A MULHERES E CRIANÇAS CONTRA O ABUSO SEXUAL E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
A questão da violência doméstica e sexual contra mulheres e crianças foi vista rapidamente por Freud ainda no final do sec. XIX, que todavia não sustentou o seu olhar e mudou completamente o foco da questão, enveredando por outros caminhos teóricos que, de novo, apontavam a inferioridade feminina.
No sec. XX, foi o estudo dos traumas de guerra que mobilizou o interesse dos cientistas. Só a partir de 1970, com os movimentos feministas é que se reconheceu que traumas causados pela violência contra mulheres e crianças eram ainda mais frequentes do que os traumas de guerra. Por muitos anos a privacidade da vida doméstica encobriu e tornou segredo o que se passava no interior do lar. Nunca houve palavras para nomear a tirania da vida privada. Abuso físico, sexual, psicológico, emocional, social (CUKIER, 1993)[7] ‒ todos estes são termos relativamente novos para nomear o “problema sem nome” que acometia mulheres e crianças.
Trabalhos em grupos de sensibilização, tais como os grupos de veteranos de guerra, permitiram que as mulheres finalmente compartilhassem sua intimidade e expusessem as vergonhas e humilhações que sofriam. No consultório privado, as mulheres que denunciaram seus estupros foram desacreditadas, mas nos grupos esta denúncia ganhou força. A primeira conferência pública sobre estupro foi levada a efeito em 1971, pelas feministas radicais de Nova York. O primeiro tribunal de crimes contra a mulher iniciou suas atividades nos Estados Unidos em 1975. Nesse mesmo ano, foi inaugurado um centro de pesquisa sobre o estupro, e em 1980 um estudo epidemiológico realizado por Diana Russel estimou que uma em cada quatro mulheres foi abusada sexualmente na sua infância.(HERMAN,1992). O estupro foi ressignificado não só como crime sexual, mas de violência. Uma forma de domínio masculino e de controle político das mulheres: a arma ‒ a genitália masculina; para elas, a vergonha e a humilhação.
Em 1972, uma enfermeira psiquiátrica Lynda Holmstrom estudou os efeitos psicológicos do estupro, definindo a “Síndrome do trauma por estupro”, que é extremamente semelhante à “Síndrome de guerra”, hoje chamada de “Estresse Pós -Traumático”. Os trabalhos originais sobre abuso sexual se referiam ao estupro de rua, com mulheres adultas e cometido por estranhos. Aos poucos foram sendo incluídos outras formas de violência que ocorriam na intimidade das relações familiares, contra mulheres e crianças também.
Só após 1980, quando se legitimou o diagnóstico do “Transtorno de estresse pós-traumático” (DSM-V, p. 271), é que se percebeu que a síndrome psicológica observada em sobreviventes de estupro e violência doméstica era semelhante à dos veteranos de guerra. A histeria de meados do sec. XIX é a neurose de guerra resultante dessa batalha dos sexos, onde o homem domina a mulher com sua força física e genitália.( HERMAN, 1992, p. 32). A história desta patologia mostra claramente que sem suporte político e social conhecimentos científicos, sucumbem à força dominante .
O QUE O TRAUMA CAUSA NO CORPO HUMANO?
A resposta imediata a uma situação estressante** dispara mecanismos de reação do sistema nervoso simpático, conhecida como “reação de alerta”. A respiração se torna mais profunda, o sangue é levado do estômago e intestinos para o coração e músculos, os processos em curso no canal alimentar cessam, o açúcar é liberado das reservas do fígado, o baço se contrai e descarrega seu conteúdo, a hipófise estimula as suprarrenais e o organismo é inundado por hormônios tais como a adrenalina. É uma preparação eficaz para a atividade e para o combate, como Walter Cannon[8] já descrevia em 1939, e Paul MacLean[9] reafirmou em 1952.
LEVINE (1999)[10] mostra que quando um animal é impedido de reagir, entram em funcionamento mecanismos arcaicos cerebrais ‒ o cérebro reptiliano ‒ provocando uma resposta de congelamento das funções vitais, por simular uma morte em vida. Este artifício permite que o animal, fingindo-se de morto, consiga às vezes ser abandonado pelo predador, ou, no mínimo, um certo tempo, para bolar outra estratégia de fuga. O mesmo ocorre, com algumas diferenças, no animal humano. O neurologista americano Paul MacLean descreveu, em 1952, a natureza tripartida do cérebro humano, resultado de nossa evolução filogenética (Figura. 1)
Figura 1 – O Cérebro Visceral (Maclean, 1952)
A haste do cérebro é o cérebro primitivo, reptiliano. É um remanescente de nosso passado pré-histórico, útil para decisões rápidas, que não exigem pensamento. O cérebro reptiliano focaliza-se na sobrevivência e é orientado pelo medo, entrando em ação sempre que estamos em perigo sem tempo para pensar. Num mundo em que sobrevivem os mais capazes, o cérebro reptiliano preocupa-se com a obtenção do alimento e em não se tornar alimento.
A camada central do cérebro é a parte límbica ou cérebro mamífero, raiz das emoções, do humor e sentimentos. Já o neocórtex é a parte do cérebro mais evoluída e adiantada. Ela governa nossa habilidade de falar, pensar e resolver problemas. O neocórtex afeta a criatividade e a capacidade de aprender e abrange aproximadamente 80 por cento do cérebro.
O cérebro humano é mais especializado, entretanto funciona de forma incompleta em situações traumáticas (Le Doux e Van Der Kolk ,1996), pois o neocórtex sofre alterações funcionais liberando hormônios que o tornam entorpecido (Figura 2).As memórias que são arquivadas nesse momento de situação traumática, carecem de verbalização, são formadas por sensações, imagens visuais e padrões motores, pois a linguagem. é função néo-cortical.
Figura 2 – Funcionamento Cerebral e Memória no Estresse Pós-Traumático
Igualmente ao animal, o homem funciona com o cérebro reptiliano quando é impedido de reagir. O congelamento de funções vitais se manifesta através de uma respiração superficial e músculos endurecidos, simulando o “rigor mortis”, e uma mente anestesiada, como se a pessoa fosse um zumbi. Entretanto, ao contrário do animal que passado o perigo descongela através de um tremor corporal observável, o ser humano intermedeia estas funções físicas, com pensamentos, sentimentos, emoções, lealdades invisíveis etc ‒ produtos das duas outras camadas cerebrais que possui. Muitas vezes, uma pessoa que foi estuprada, por exemplo, tem que disfarçar seu horror, conter seu choro, seu tremor, sua vergonha, mostrar para o mundo que nada aconteceu. Como resultado dessa não-ação, seu corpo não se recupera do trauma e da impotência sentidos na hora do ataque. Fica faltando uma ação de combate, de retomada do controle, que muitas vezes só é conseguida muitos anos depois, através da repetição ativa da violência ou abuso, desta feita no papel de abusador, ou daquele que tem o controle. Muitas adições são tentativas desastradas de simular controle.
O sintomas do transtorno do estresse pós-traumático são a consequência comportamental e afetiva dessa tragédia que se passa dentro do cérebro.
SINTOMAS DO TRANSTORNO DO ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO – TEPT
Os sintomas do transtorno de estresse pós-traumático podem surgir de repente, de forma gradual, ou ir e vir ao longo do tempo, acionados por lembranças, ruído, imagens, palavras ou cheiros. Judith Herman (1992) categoriza os sintomas em três grandes grupos, como veremos a seguir: 1 – sintomas de super-excitação ; 2-sintomas de intrusão; 3- sintomas de constrição .
1- Sintomas de super-excitação
Depois de uma situação traumática, o corpo humano desenvolve uma excitação crônica do sistema nervoso autônomo, preparado para lutar ou fugir, mas completamente disfuncional quando a situação traumática desaparece. É como se tivéssemos ligado um reator e não soubéssemos desligá-lo. Um sistema de alerta permanente e crônico se estabelece, gerando sintomas como: episódios de pânico (coração acelerado, transpiração, calor, medo de morrer…); distúrbios do sono, pesadelos, insônia; dificuldade de concentração; irritabilidade; hiper-vigilância (estado de alerta como se algo ruim fosse acontecer); tremores; agitação excessiva; hiper-reatividade (assustar-se facilmente, por exemplo,); reações físicas intensas ao lembrar do evento (coração e respiração acelerados, náuseas, sudorese); ansiedade generalizada.
2 – Sintomas de intrusão
Na intrusão observa-se a permanência do evento traumático, mesmo tendo se passado muitos anos, não só na memória lógica, narrativa, mas nas sensações e emoções do paciente. É como se a vítima tivesse sua vida normal interrompida por um filme indesejado que se intrometesse no dia a dia e muitas vezes no sono, obrigando-a a reviver o trauma frequentemente. São os chamados ”flashbacks”, lembranças espontâneas, involuntárias e recorrentes, e os pesadelos, extremamente vívidos, que atormentam a vida dos sobreviventes.
Há várias tentativas de explicação deste fenômeno. Freud, inicialmente, chamou-o de “Compulsão à repetição”, uma forma da vítima treinar e ganhar controle da situação traumática. Depois, mais para o final de sua vida, Freud teorizou que esta repetição compulsiva seria uma expressão do “Instinto de morte”. O psiquiatra Bessel Van Der Kolk (HERMAN,1992) especula que quando o sistema nervoso simpático fica num estado de alta excitabilidade, a memória linguística não é codificada, apenas a memória de imagens e sensações.
3- Sintomas de constrição
Quando uma pessoa não consegue nem lutar, nem fugir, e fica completamente sem poder na mão de seu algoz, o sistema nervoso dela fecha-se e congela, produzindo um estado alterado de consciência, um entorpecimento. Nesse estado, ela fica separada do próprio corpo, como que assistindo de longe o que se passa, numa calma estranha, em que a raiva e a dor se dissolvem e até a noção do tempo fica transformada. Pode-se dizer que esse estado é o mesmo da dissociação defensiva, que se obtém na hipnose, e é uma propriedade normal do ser humano, uma espécie de morfina fisiológica, utilizada espontaneamente para reduzir a percepção da dor.
Especula-se que o trauma prolongado possa criar alterações permanentes na regulação dos opióides naturais do sistema nervoso central (HERMAN, 1992), de tal forma que, ao término da situação traumática, o cérebro da pessoa não consegue mais funcionar normalmente, ficando ela permanentemente meio dissociada, com lapsos de memória e pensamento lógico.
Os principais sintomas de constrição são: distanciamento emocional (fuga de qualquer estímulo que possa desencadear o ciclo das lembranças traumáticas), vazio, perda de esperança e expectativa de futuro (profissional, familiar e de vida), perda de interesse por atividades agradáveis no passado, impotência, perda de memória, sentimento de culpa e vergonha, depressão, desesperança, hipocondria.
ESTUDOS ESTATÍSTICOS SOBRE EFICÁCIA TERAPÊUTICA E ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
Uma breve revisão de estudos estatísticos dos últimos anos a respeito da eficácia terapêutica das várias abordagens para o estresse pós-traumático aponta, à primeira vista, uma ligeira vantagem para as abordagens de EMDR[4][11];[12];[13];[14];[15]CBT[5],[16];[17];[18] , sobretudo se ambas as técnicas forem adaptadas para focar no trauma[19].
Fala-se em terapia cognitiva[20], terapia comportamental cognitiva[21], terapia comportamental cognitiva focada no trauma [22], enfim, as abordagens tornam-se específicas para os transtornos mentais que estudam, e criam protocolos especiais com técnicas advindas de fontes não específicas.
A Terapia Somática (SE)[6] tem poucos estudos estatísticos, mas começa a ganhar evidência. Gina Ross (2015)[23], num estudo ainda não publicado, comparou 63 pessoas em terapia somática com um grupo-controle de lista de espera ‒ ambos os grupos diagnósticos com Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT), pelos critérios do DSM-IV. A análise estatística mostrou que tanto os sintomas do TEPT como de depressão decresceram, de forma estatisticamente significativa no grupo de tratamento e se mantiveram iguais no grupo controle .
A terapia por exposição, imaginária ou ao vivo[7], é uma técnica dentre outras do EMDR, bem como da Terapia Cognitiva. É também utilizada no psicodrama, seja enquanto um psicodrama interno ou como uma montagem de cena aonde o paciente revive seus papéis. Uma revisão de 2012 mostra estatísticas extensas favoráveis a este método[24], e poucas sessões parecem necessárias para alívio de sintomas complexos[25]. Já outros estudos recentes postulam que o método não é mágico e pode inclusive piorar os sintomas e retraumatizar os pacientes[26],[27].
Desde a sua descoberta, a EMDR tem sido considerada um dos tratamentos de escolha para PTSD (Post-Traumatic Stress Disorder), embora estudos sobre sua eficácia tenham inúmeras dificuldades metodológicas [28] e, na opinião de alguns autores “o que é eficaz na EMDR é a técnica da exposição imaginária, que aliás é uma técnica já antiga, compartilhada por várias abordagens teóricas, inclusive o Psicodrama. A grande novidade da EMDR − a estimulação bilateral de olhos ouvidos ou pele, para reunificar a linguagem dos hemisférios cerebrais −, por seu lado, não é comprovadamente eficaz”, como apontam McNally (1999)[29] e Pitman (1996)[30].
Avaliações estatísticas da eficácia das psicoterapias interpessoais[8] e psicoterapias psicodinâmicas de longa duração com o estresse pós traumático são mais escassas, mas trazem resultados positivos[31]. Um estudo que compara a terapia interpessoal com a terapia da exposição para pacientes depressivas, conclui que nem sempre a exposição é benéfica e que a terapia interpessoal é mais eficaz em alguns casos[32]. Outro trabalho conclui que não há diferenças significativas entre a terapia cognitiva e a psicoterapia psicodinâmica no tratamento de veteranos de guerra[33].
Em relação ao psicodrama[9] as estatísticas são mais escassas ainda. Uma metanálise realizada com base em 25 estudos experimentais, com patologias diversas, aponta um resultado bastante positivo, quando comparado a grupos de psicoterapia em geral. As técnicas do duplo e da inversão de papel foram as intervenções mais eficazes[34]. Pesquisas empíricas sinalizam que a psicoterapia vivencial pode ser muito efetiva no estresse pós-traumático[35], [36].
Como é possível ver nesta minha breve e árida incursão na estatística dos tratamentos psicoterápicos, controvérsias não são poucas nessa área. Decisões complexas sobre o desenho dos estudos tem que ser tomadas: qual método estatístico utilizar, como padronizar a amostragem, vantagens e desvantagens de utilizar grupos de controles, avaliações antes e depois dos tratamentos, metanálises para generalizações mais seguras e, finalmente estudos longitudinais que comprovem a permanência do sucesso terapêutico. Para resumir, quase todos os estudos que pesquisei apresentavam um ou outro problema metodológico.
Apesar disso, os métodos terapêuticos comprovados cientificamente são considerados mais eficazes e acabam sendo mais recomendados, sobretudo diante de políticas de saúde pública que privilegiam resultados a curto prazo. Comprovar que um método é eficiente não é o mesmo que afirmar que os outros métodos não o sejam. Com essa falácia, as terapias menos estudadas no tratamento de TEPT, incluindo o psicodrama, acabam sendo marginalizadas.
É, portanto, extremamente importante que nós, psicodramatistas, nos aventuremos por esse caminho árido, sob pena de ver um método tão criativo e eficiente como o nosso ficar soterrado nos escombros de outras psicoterapias
VI- O ESTRESSE PÓS TRAUMÁTICO E O PSICODRAMA
O psicodrama, como anuncia o seu criador[37], visa tratar a humanidade. Para isso criou a psicoterapia de grupo, hoje amplamente utilizada em suas diferentes formas. Experiências traumáticas ocorrem no plano individual e coletivo. Incluem eventos estressantes que destroem o sentimento de segurança, e fazem indivíduos e populações se sentirem impotentes e vulneráveis em um mundo perigoso. É o caso das catástrofes naturais, sociais e pessoais tais como terremotos, enchentes, guerras , terrorismo, guerrilhas, acidentes, roubos, sequestros, estupros, violência doméstica etc.
O trauma interrompe e impossibilita a resposta de defesa do organismo, congelando as funções cognitivas e deixando o corpo terrificado, e sem possibilidade de defesa. Terapias verbais são ineficientes, e uma mobilização do corpo é necessária para tentar resgatar a potência muscular e restaurar as funções cognitivas[38].
Pois bem, o psicodrama foi uma das primeiras terapias corporais e é extremamente adequado na utilização da linguagem corporal. Sua única desvantagem é ser um corpo teórico pouco avaliado estatisticamente. Com esta preocupação de sistematizar o trabalho psicodramático e mostrar sua eficácia, Kellerman & Hudgins (2010)[39] reuniram num livro magnífico, as sugestões técnicas de vários autores para o trabalho com estresse pós-traumático.
Kellerman (1992)[40] mostra seis estratégias técnicas do psicodrama extremamente adequadas para trabalhar com os sintomas do estresse pós- traumático:
1 e 2 – A simples dramatização dos eventos traumáticos permite , simultaneamente: 1- que o cliente revisite fatos dolorosos num ambiente seguro e 2- que reprocesse cognitivamente o ocorrido, desta feita sem o efeito de torpor que costuma ocorrer durante o trauma.
3 – A catarse emocional ajuda a drenar resíduos emocionais da situação traumática.
4 – A realidade suplementar expande o mundo interno do cliente, agregando novas de ações.
5 – O trabalho relacional ajuda a prevenir o isolamento frequente de pacientes traumatizados .
6 – O sociodrama socializa a dor individual, promove ações coletivas e a ressignificação dos eventos traumáticos, além de transformar o papel de vítima para o de sobrevivente.
Blatner e Bouza M.& Espina Barrio (em Kellermann & Hugins, 2010) destacam as dificuldades da elaboração do luto ( de pessoas, partes do corpo, papéis outrora assumidos, etc. ) em pessoas traumatizadas. Blatner destaca que a pessoa em situação de perda grave e luto patológico transita entre estados adultos de aceitação da realidade e outros mais regredidos e infantis, em que nega e se comporta como se pudesse mudar o acontecido.
O terapeuta deve ficar neutro e deixar o paciente pendular entre esses dois estados, até que a realidade finalmente seja aceita. Propõe a técnica do “encontro final” que é uma realidade suplementar utilizando a cadeira vazia: “Vamos imaginar que esta pessoa (ou sua perna, seu grupo, seu filho) pudesse voltar, e que vocês pudessem conversar, o que você lhe diria?” Três conjuntos de perguntas podem ser formuladas pelo diretor, que deve, na entrevista ajudar o paciente a responder de forma detalhada e não superficial e vaga: O que nós tínhamos em comum? O que você significou para mim? O que eu signifiquei para você?
Já Bouza, & Espina Barrio chamam atenção para o psicodrama antropológico, que busca recuperar os rituais de passagem ligados à morte (morte em casa, velório, exaltação do morto, choro, etc.). Argumentam que nossa cultura ocidental além de evitar o enfrentamento da morte, nos oferta catástrofes coletivas, como guerras, que banalizam a importância da vida humana. Destaca que o luto se elabora por fases, normalmente ao longo do primeiro ano. Resumem estas fases da seguinte forma: 1 – Não! Não é verdade, isso não aconteceu!; 2 – Sim, mas não. Aconteceu, mas eu não consigo aceitar e lidar com isso; 3 – Sim aconteceu e eu preciso aceitar e lidar com isso.
Marcia Karp (em Kellermann & Hugins, 2010), trabalhando com vítimas de tortura e estupro, fala da importância de um terapeuta cuidadoso, empático e extremamente protetor para não re-traumatizar a vítima. Numa sessão grupal, por exemplo, pede para os demais participantes ficarem de costas e evitarem olhar a protagonista envergonhada.
Sua abordagem prioriza novas visualizações e verbalizações para reprocessar cognitiva e afetivamente a experiência traumática. Procura empoderar o paciente, dando-lhe controle da cena traumática e deixando que ele a modifique conforme sua necessidade. Frequentemente as vítimas de violência e estupro ficam ruminando ideias daquilo que poderiam ter feito para se proteger ou proteger pessoas queridas, sentindo-se culpadas pela não-ação. A realidade suplementar é então utilizada, para encenar as situações da forma que o paciente gostaria que tivessem ocorrido, e até para experimentar se, de fato, teriam sido mais eficientes.
Num workshop que assisti pessoalmente, Marcia pedia para a cliente dividir a cena traumática em vários pequenos clipes e vinhetas. Depois iniciava a dramatização cuidadosa de todos os pequenos detalhes de cada clipe, com especial ênfase naquilo que a cliente gostaria que tivesse ocorrido. Além disso, a diretora designava vários papéis para a protagonista, não só papel da vítima, que já tinha, mas também o da polícia, do atirador, do FBI, etc. Foi lindo ver uma cliente pálida, com estupor, ganhar cor, lutar e chutar almofadas, mostrando vida finalmente.
Marcia Karp utiliza a inversão de papel para concluir conversas que não aconteceram e propiciar uma visão mais completa do que pensavam as pessoas na cena traumática. Finalmente busca restaurar papéis anteriores ao trauma , substituídos pelo papel de vítima impotente, e reacender a esperança e potência do paciente .
Anne Bannister, psicodramatista, e dramaterapeuta inglesa, trabalhou intensamente com crianças abusadas, publicando em 1997 o livro The Healing Drama: Psychodrama and Dramatherapy with Abused Children[41]. No artigo “Prisioneiros da família: psicodrama com crianças abusadas” (em Kellermann & Hugins, 2010), avalia e comprova a eficácia de 20 sessões de psicodrama grupal, na eliminação de sintomas do estresse pós-traumático de crianças abusadas.
Bannister considera que crianças que sofreram abusos prolongados são como prisioneiros torturados, não podem sobreviver sozinhas e estão atadas por vínculos emocionais aos próprios abusadores. As sequelas costumam ser intensas, configurando o quadro que Judith Herman classifica como “estresse pós-traumático complexo”.
Essa autora utiliza todo o instrumental técnico do psicodrama, destacando a técnica do espelho, para a criança ver a cena sendo jogada por fantoches, a inversão de papéis com fantoches, o uso de fantasias e o jogo livre de vinhetas dramáticas propostas pelas crianças ou pelo próprio terapeuta, no estilo de um “Jornal Vivo”(Moreno, 1973).[42]
Talvez um dos trabalhos mais criativos, usando o psicodrama para tratar o estresse pós-traumático, seja o da Dra. Kate Hudgin[43], psicóloga americana.
Ela acredita que o psicodrama clássico pode retraumatizar o paciente e estimular dissociação. Por essa razão criou um modelo experimental de psicodrama chamado Modelo Terapêutico em Espiral – MTE (Therapeutic Spiral Model-TSM ), cujo objetivo central é garantir segurança e continência para sobreviventes de trauma.
Utiliza uma equipe de egos auxiliares bem treinados, que consiste de um mínimo de quatro pessoas: o diretor, o assistente do diretor e dois ego-auxiliares. Além disso, adaptou técnicas do psicodrama clássico para proteger o cliente de regressões descontroladas, em todos os momentos da sessão.
No aquecimento, emprega o que chama de papéis prescritos. São papéis positivos que o paciente destaca e concretiza (com lenços, objetos da sala etc.) antes de começar a trabalhar sua cena traumática. Estes papéis garantem que o paciente sempre tenha para onde voltar, se ficar fragilizado e se sentir regredido durante a re-vivência. São de 3 tipos: papéis restauradores; papéis de contenção; papéis de observação.
Na dramatização utiliza vários recursos de segurança:
- O paciente só acessa a cena traumática, quando o diretor considerar clinicamente apropriado. Primeiro o protagonista conta a cena traumática, depois assiste e testemunha os egos jogando a cena, só depois ele mesmo joga o seu papel;
- As dramatizações de cena aberta[44] são tipificadas de acordo com o nível de estresse que proporcionam ao paciente e o diretor guia o protagonista num crescendo de dificuldades. Vejam os tipos de dramatizações: restauração, renovação, metáforas, descoberta inicial, sonhos , colocando nomes, expressando e explorando; núcleo da cena traumática, reparação do desenvolvimento , esquecendo e transformando.
- A técnica do duplo contenedor, ou duplo que contém é muito utilizada para prevenir dissociações. Um ego auxiliar se coloca, primeiramente, ao lado do protagonista e descreve na 1ª pessoa do singular o afeto, as sensações e o conteúdo daquilo que ele, protagonista está vivenciando. Em seguida, ainda na 1ª pessoa do singular,o ego estimula o cliente a respirar e recordar da força e energia que ele próprio concretizou previamente, durante o aquecimento, com lenços e objetos.
- Muito interessante e útil é a técnica do “átomo de papéis” baseada no trauma, pois mostra como os papéis normais da vida do cliente são solapados e substituídos por outros criados pelas estruturas defensivas e pela internalização do trauma.
No compartilhar, Kate Hudgins recomenda que haja bastante tempo para esta fase final da sessão terapêutica. Diz que muito frequentemente, egos auxiliares e integrantes da plateia , estimulados pela memórias traumáticas do protagonista, regridem e dissociam, demandando um trabalho de continência e elaboração de suas próprias reminiscências.
Jörg Burmeisteir (em Kellermann & Hugins, 2010), psiquiatra suíço faz uma contribuição importante para o psicodrama com sobreviventes de acidentes de tráfico. Lembra que estes pacientes, além de terem sequelas pessoais dos acidentes, perdendo partes do corpo, mobilidade, por exemplo, também perdem familiares e amigos e têm que elaborar, muitas vezes, a culpa de terem causado o acidente e sobrevivido.
São clientes que se apresentam fortemente traumatizados, com bloqueio do sistema normal de processamento de informações, dissociação, baixa capacidade de simbolização, e alta ativação sensório motora e afetiva. O psicodrama, que atua nos aspectos motor, sensorial e afetivo é altamente recomendável.
Propõe um modelo de abordagem terapêutica integrativa em 4 estágios, algo semelhante à de Kate Hudgins, mas simplificada, com ênfase nas intervenções psicodramáticas, centradas na ação:
- Estágio I – Preparação. Inclui as entrevistas iniciais , o estabelecimento de uma relação terapêutica propriamente dita.
- Estágio II – Segurança e empoderamento: começa com um descondicionamento da ativação fisiológica usando técnicas de relaxamento. Em seguida, o cliente identifica e concretiza momentos de força e energia que vivenciou no passado, bem como relações sociais de suporte e encorajamento. Finalmente estabelece, junto com o Terapeuta, os objetivos da terapia.
- Estagio III – Reorganização da cena traumática: esta fase se inicia com a criação simbólica de um lugar seguro, montagem e observação da cena traumática à distância, observação dos egos auxiliares jogando a cena e, finalmente, o paciente protagonizando sua cena e transformando-a, com a introdução de realidades suplementares que o empoderam e lhe dão segurança.
- Jörg Burmeisteir contraindica a inversão de papel com o agressor, pois acredita que pode facilitar uma indesejável identificação com o agressor.
- Nesta fase, são feitas vinhetas para elaborar perdas e negócios inacabados, bem como criar papéis novos como o de defensor, ou outras realidades suplementares que empoderem o paciente manejando a interrupção do trauma.
- Estágio IV – Reconexão com o mundo: esta fase visa trabalhar a sociometria do paciente, trazer à tona papéis que foram abandonados e ver se é possível resgatá-los, continuar trabalhando lutos e negócios inacabados, bem como estimular o cliente a criar novos papéis e relações. Aqui entra a questão da justiça, e a terapia deve ajudar o cliente inclusive a instalar ações policiais que visam recuperar sua dignidade.
Burmeisteir também trabalha com grupos pequenos e homogêneos de pessoas que foram severamente lesadas em acidentes, com o objetivo de reconstruir a identidade social dessas pessoas e de propiciar um compartilhar entre iguais. Mesmo quando há perda da fala, diz que esses pacientes se beneficiam da solidariedade presente nesses grupos. A pergunta ilógica:− Por que comigo foi que isto aconteceu? − É muito comum neste subgrupo. Deus é frequentemente chamado para se sentar na cadeira vazia e responder, ressignificando velhas questões, outrora esquecidas pelos participantes.
Enfim, há muitos outros colegas que utilizam o psicodrama com a questão do estresse pós-traumático, de forma criativa, dinâmica e eficiente. Tyan Dayton, por exemplo, tem um modelo para reparar traumas relacionais[45]. Esta autora tem um livro inteiro de jogos e manejos técnicos voltado para o estresse pós- traumático em grupo.
Nossos colegas estrangeiros já perceberam que precisamos ganhar visibilidade em nível estatístico. Isto é feito a partir de padronização de técnicas e sua aplicação, treinando diretores e desenhando estudos estatístico quantitativos e longitudinais.
VII- CONCLUSÃO E SUGESTÕES
Meu dinossauro antiquado parece querer renascer agora. Sei que não existem técnicas rápidas e mágicas e que tenho ouro na mão quando me digo psicodramatista. Entretanto, queria ter todo o poder acadêmico do mundo para conseguir:
- Uma equipe de estatísticos eficiente que desenhe estudos longitudinais para avaliações antes e depois de sessões psicodramáticas
- Uma capacidade infinita de persuasão que convencesse meus colegas a trabalharem em conjunto por alguns anos, somando amostragem de casos por patologia. Assim, todos que estivessem atendendo depressivos trabalhariam numa avaliação; todos os que estivessem atendendo fóbicos comporiam um segundo time de pesquisa e assim para estresse pós-traumático etc.
- Gostaria de fazer parte de uma equipe que treinasse replicadores, colegas e alunos de psicodrama para participarem dessas pesquisas, procurando, sem acabar com a espontaneidade deles, ensinar algumas técnicas propostas, descritas no capítulo anterior e que, reconhecidamente, podem ajudar muito pacientes traumatizados. São elas:
1- Nas entrevistas iniciais : mesclar um ouvir continente com perguntas gentis que criem sintonia, segurança e um senso de normalidade. Acho extremamente importante explicar ao cliente, clara e objetivamente, como o cérebro humano funciona em situações traumáticas. Isto legitima os sintomas, cria uma lógica aonde antes existia o caos e traz de volta a esperança de ter potência e melhorar. Afinal aprendemos , das Psicoterapias Cognitivas, que mudar pensamentos negativos, agregar novas explicações – que não as catastróficas e derrotistas dos deprimidas – muda as configurações emotivas e comportamentos subsequentes.
Depois das entrevistas verbais , propor a vivencia do Átomo Social antes do trauma, e do Átomo Social depois do trauma- este recurso mapeia as perdas de papéis e relacionamentos e dá uma agenda ao terapeuta e ao cliente do que deve ser restaurado durante a terapia.
2- No aquecimento – O aquecimento deve ser estrategicamente montado para marcar as habilidades positivas do cliente, os lugares na vida onde ele é forte e as pessoas, instituições, recursos espirituais que lhe servem de apoio. Começar uma dramatização evidenciando a força do paciente é garantir que ele sempre se lembre desses recursos durante os momentos mais dolorosas da dramatização; protege os clientes de re-traumatizações e dissociações.
3- Na dramatização: Montagem e elaboração cognitiva-emocional da cena traumática – com aproximações sucessivas à ação: primeiro o paciente conta, depois olha a cena sendo jogada por egos auxiliares; finalmente protagoniza a cena.
Esta montagem cuidadosa da cena, garante que o aquecimento se faça de forma suave, do superficial para o profundo, do atual para o antigo. O cliente controla a dramatização, modifica o papel dos egos, tem o controle que lhe foi tirado no trauma original. O diretor tem um papel de controle indireto, empoderando sempre o cliente.
Nesta fase também são feitos vários roles playings com exposição do cliente à cena temida, ou à cena desejada com todos os papéis que ela inclui. Essa é nossa versão da técnica da exposição cuja eficácia é bem evidenciada nos estudos estatísticos.
3.a: Na dramatização, um cuidado especial com a fase reparatória final, aonde se procura investigar : que recursos o paciente precisa para se empoderar nesta cena? Qual o trabalho de luto que se faz necessário para que esta cena, ou relação, ou despedida, ganhe um encerramento digno?
Nessa fase, a riqueza criativa da realidade suplementar e a força estratégica da interpolação de resistência são importantíssimas para reassegurar a potência do cliente. Das psicoterapias somáticas aprendemos que , no corpo ficou soterrada pela submissão forçada, uma ação de defesa que restaure a sensação de controle e segurança. Introduzir super-heróis, fadas e princesas, amigos musculosos, heróis da humanidade, pode em um mágico momento , descongelar o corpo oprimido e surpreender o cliente com uma força de chutar, bater, correr, gritar, que ele julgava inexistentes.
O diretor auxilia , então, na re- matrização da autoestima do cliente, muitas vezes salientando que sua ação de submissão forçada foi a mais inteligente na época e garantiu sua sobrevivência.
3.b: Sempre terminar a fase da dramatização com uma cena voltada ao futuro e à recuperação da vida social – o que o paciente deseja fazer do resto da sua vida. Que tarefas, papéis, precisa retomar ou iniciar que lhe tragam orgulho e a sensação de ter vivido uma vida plena de sentido? Gosto de perguntar estrategicamente, qual a mínima ação que o cliente tem que empreender na semana seguinte à sessão, para que as mudanças que espera comecem a acontecer. Esta pergunta situa o cliente o cliente na realidade comportamental de seu dia a dia.
4- Finalmente no sharing, proporcionar um compartilhar de experiências que , não apenas permita à plateia, egos auxiliares e o próprio terapeuta dividir suas vivências traumáticas , mas inclua o paciente num grupo de pessoas que mais do que vítimas passivas e impotentes , são sobreviventes heroicos do próprio destino.
Há, sem dúvida, muitos outros recursos técnicos habilidosos no psicodrama, mas a ideia, quando se trata de obter validação estatística, é nos concentrarmos em uns poucos, bem vivenciados e treinados. Assim, creio que poderemos avançar numa pesquisa quantitativa e mostrar a riqueza de nossa abordagem.
Pessoalmente há anos venho utilizando o psicodrama com pacientes traumatizados. Tenho escrito extensivamente sobre abuso infantil, distúrbios narcísicos e borderlines, dissociação, adições e não tenho a menor dúvida da eficácia de nossa técnica. Nos últimos 10 anos, venho acompanhando, com alegria, os resultados da neurociência que valorizam e validam as técnicas vivenciais na psicoterapia. Acho que esta é nossa hora, mas temos que fazer nossa parte!
Notas Bibliográficas
[1] Psicóloga, psicanalista, psicodramatista professora-supervisora pela SOPSP (Sociedade de Psicodrama de São Paulo) e pelo Instituto J.L. Moreno de São Paulo.
[2] Agradecimento especial à Cecilia Zylberstajn pelo auxilio à pesquisa .
[3] War, Stress and Neurotic Illness- Kardiner, Abram; Spiegel, Herbert. Oxford, England: Hoeber. (1947).
** situação estressante significa qualquer situação que leva o indivíduo a um estado de desespero, seja por estar lutando para preservar sua vida ou a vida de outrem significativo, ou estar presenciando situações de risco à vida de outras pessoas.
[4] EMDR- Dessensibilização e Reprocessamento através de Movimentos Oculares, terapia criada em 1987, pela psicóloga Francine Shapiro. É um tratamento complexo que exige que se siga um protocolo de atendimento, as sessões podem ser mensais ou semanais (duração de 50 minutos até 2 horas). O terapeuta pede ao paciente que simultaneamente, pense na situação traumática e faça movimentos oculares bilaterais, seguindo o dedo da terapeuta. Podem ser usadas outras formas de estimulação bilateral como a auditiva ou táctil. O EMDR parece ter um efeito direto sobre a forma como o cérebro processa a informação, semelhante ao que ocorre naturalmente durante o sono REM, aonde o rápido movimentar dos olhos é observado e associado com o processamento da informação.
[5] A Terapia Cognitiva (TC), ou terapia cognitiva comportamental (TCC) foi criada pelo Dr. Aaron T. Beck na década de 1960. Descobriu que pacientes deprimidos experimentam fluxos de pensamentos automáticos negativos e hipotetizou que ajudando-os a modificar esses pensamentos negativos, os capacitaria a transformar suas emoções e comportamentos.
A terapia cognitiva comportamental (TCC) é uma terapia verbal, realizada uma ou duas vezes por semana ou a cada duas semanas. O tratamento dura, geralmente , entre cinco a 20 sessões, de 30-60 minutos. Parte do principio de que os processos cognitivos são formados pela interligação de pensamentos, imagens mentais, sensações, crenças e atitudes. Durante as sessões, o cliente é convidado a dividir os seus problemas em partes separadas. Por exemplo, deve poder dizer: o que ele sente, pensa e o que o corpo dele registra sobre o problema. Depois irá analisar estas áreas para descobrir se sua forma de agir, sentir e pensar é realista, pessimista, funcional, útil ou inútil e o terapeuta tentará então ajudá-lo a mudar os pensamentos e comportamentos inúteis. Após esta fase de análise e proposta de mudança, o terapeuta pedirá para o cliente praticar em sua vida ,ou seja , expor-se às situações que evitava e treinar as novas condutas, munido da cognição aprendida na sessão terapêutica. Esta é a técnica da exposição que, quando praticada, dará conteúdo paras próximas sessões.
[6] A Experiência Somática (SE) foi desenvolvida por Peter Levine na década de 70. Enquanto se especializava na relação mente e corpo, Dr. Levine percebeu semelhanças entre o comportamento de presas no mundo natural com aquele de pessoas traumatizadas. Ambos tinham em comum uma resposta congelada de imobilidade. A diferença é que o animal conseguia se reestabelecer e os seres humanos ficavam acuados num ciclo aprisionante de medo e sintomas. Ao tentar algo inusitado com uma paciente refratária, ele conseguiu fazer com que ela tivesse uma descarga física de um trauma que depois veio a descobrir se tratar de uma cirurgia na infância. Depois de uma sessão, os ataques de pânico sumiram e ela não precisou mais de medicação.
SE é uma terapia breve, cada sessão dura em torno de 50 minutos e seus efeitos perduram por até 72 horas. Em geral, são necessárias de uma a 10 sessões. O paciente é convidado a perceber o corpo, rastreando suas sensações e emoções presentes. O terapeuta conduz o paciente por este caminho, facilitando o ir e vir do organismo em direção à descarga minuciosa e gradual dos altos níveis de ativação. Um diferencial da terapia somática é que não é necessária a lembrança ou reviver a situação traumática. É perfeitamente possível um paciente se livrar do trauma sem ter que revisitar a cena original. A memória que importa é a do corpo e não a da mente.
[7] A técnica de exposição a estímulos temidos foi desenvolvida pelo psicólogo russo Victor Meyer[7] nos anos 1960. Também chamada de terapia de exposição e prevenção de resposta (EPR), foi a primeira abordagem psicológica com efetividade comprovada no tratamento dos sintomas do TOC.
Primeiramente se constrói uma hierarquia de situações temidas ordenada de acordo com a quantidade de ansiedade que eliciam (WOLPE, 1973).[7] Nos estágios inicias da terapia de exposição, as situações são enfrentadas geralmente na companhia do terapeuta, até que possa ocorrer a habituação da ansiedade. Após a exposição repetida e prolongada, que deve durar por aproximadamente 50 minutos, e quando a situação não eliciar mais altos níveis de ansiedade e desconforto, passa-se ao próximo item da lista de situações problemáticas. Uma variação da terapia da exposição é a terapia de exposição prolongada. Trata-se de um protocolo de tratamento desenvolvido por Edna Foa e colegas (FOA et al., 1991),[7] Ph.D. e diretora do Centro para o Tratamento e Estudo da Ansiedade, na Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos.
[8] A Psicoterapia psicodinâmica é a mais antiga das terapias modernas, tendo evoluído da psicanálise de Freud, acrescida dos conhecimentos advindos dos neo-psicanalistas, psicanalistas do ego (https://en.wikipedia.org/wiki/Ego_psychology), tais como: Ernest Kris, David Rapaport, Merton Gill, Rudolph M. Loewesntein, Franz Alexander, Heinz Hartmann, Karey Horney, Greenson, Adler, Bion, Guntrip etc. Para esta abordagem, a personalidade humana é fruto não apenas das pulsões internas e sexuais mas também dos contextos sociais e culturais, valorizando o relacionamento interpessoal entre cliente e terapeuta, a chamada aliança terapêutica. Assenta-se na crença de que o nosso comportamento é determinado por processos mentais parcialmente inconscientes, na sua maioria, constituídos durante a infância. Deste momento de total dependência dos pais a criança sobrevive a custa de defesas intrapsíquicas, que podem não ser adequadas à sua vida adulta, aonde ela dispõe de uma multiplicidade de novos recursos e opções. Rever as relações da primeira infância é um dos focos da psicoterapia psicodinâmica e isto só é feito graças a uma forte e segura aliança terapêutica.
A psicoterapia psicodinâmica é um enorme guarda-chuva de psicoterapias que operam num continuum de intervenções que vão desde a interpretação, confrontação, validação empática, reforço positivo, aconselhamento, até a expressão artística ou psicodramática dos sentimentos. Em geral atua numa frequência menor que a psicanálise , uma ou duas vezes por semana.
[9] O Psicodrama foi criado pelo psiquiatra romeno Dr. Jacob Levy Moreno (1889-1974) e desenvolvido em colaboração com sua esposa, Zerka Moreno. Moreno era um médico atípico, interessado em filosofia, misticismo e teatro. Criou o psicodrama, o sociodrama e a psicoterapia de grupo, formas de psicoterapia para a sociedade e para o indivíduo, que têm contribuído com ideias e técnicas usadas em muitas outras formas de psicoterapia, como por exemplo, a Gestalt, os grupos de Encontro e todas as psicoterapias vivenciais.
Foi uma das primeiras pessoas a reconhecer o poder de cura de um grupo, incluindo a importância de grupos de autoajuda, onde cada pessoa se torna o agente de cura do outro. Além disso, valorizou a importância do corpo na investigação e comunicação do paciente, reduzindo o então reinado soberano da verbalização nas psicoterapias e sendo o precursor de muitas das terapias expressivas modernas. Os escritos de Moreno são incrivelmente condizentes com o emergente campo da neurobiologia interpessoal e inteligência social.
O psicodrama é uma abordagem terapêutica ativa e criativa que usa a dramatização e o jogo de papéis para trabalhar problemáticas relacionais e emocionais dos clientes. Pode ser utilizado em grupo ou individualmente, num trabalho processual ou como ato terapêutico. Sua aplicabilidade extrapola a clínica psiquiátrica sendo eficazmente empregado em qualquer contexto educativo ou empresarial.
Durante cada sessão de psicodrama, os participantes são convidados a reencenarem situações problemáticas de suas vidas, com orientação de um terapeuta. Essas cenas podem incluir situações passadas, sonhos e também preparações para eventos futuros. Em um ambiente de grupo, outros participantes podem desempenhar os papéis das pessoas significativas da vida do paciente, oferecer apoio e compartilhar experiências.
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[2] JONATHAN Shay – Achilles in Vietnam: Combat Trauma And The Undoing Of Character, Scribner, NY. 1994.
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No 20° Congresso Brasileiro de Psicodrama em 2016 dirigi , com auxílio das psicodramatistas Maria Célia Malaquias[1] e Cristine G. Massoni[2] um sociodrama grupal com o título: Dor Étnica: orgulho, vingança e reparação. Foi um trabalho intenso, que utilizava, como técnicas centrais, o psicodrama interno e o compartilhar grupal.
Temas como: distúrbios étnicos, narcisismo[3], narcisismo grupal[4], racismo[5], vergonha, vingança e reparação já constavam das preocupações teóricas da diretora e da ego auxiliar. Neste sociodrama busquei, através de consignas muito estruturadas, as alianças grupais dos participantes, suas primeiras “tribos” e quais eram os sentimentos, emoções, legados positivos ou negativos desta pertinência.
Várias consignas estimulavam a identificação de sentimentos de orgulho. Por exemplo, quais aprendizados valiosos cada participante carregava consigo, até hoje, advindos desta primeira inserção social. Outras consignas propunham a rememoração de cenas de vergonha, onde o mesmo grupo primário havia sido ofendido ou havia sido ofensivo com outro grupo ou com outrem.
No final do trabalho solicitei que os participantes escrevessem pedidos de desculpas, tanto as desculpas que gostariam de ter ouvido em relação ao seu grupo, como aquelas que achavam que seu grupo deveria pedir a outros.
E foi aí que me surpreendi e é onde este novo trabalho começa. Registreis cerca de 50 pedidos de desculpas, sobre os mais diferentes temas: famílias pedindo desculpas para outras famílias, pais para filhos, nacionalidades para outras nacionalidades, adultos para crianças, ricos para pobres, times de futebol, religiões entre si, etc. ( leiam os pedidos de desculpas no apêndice final ) [i].
A intensa carga de emoção expressa nestes pedidos de desculpas me fez indagar se eles seriam efetivos numa mudança de atitude dos participantes do workshop.Na realidade resolvi investigar a literatura especializada sobre o tema “desculpas”, tanto no nível individual quanto grupal e como seria possível instrumentalizar este conhecimento em futuros sociodramas.
O QUE É PEDIR DESCULPAS?
Segundo Tavuchis (1991:27) um pedido de desculpas é uma fala que busca o perdão por algum erro cometido, reparando injustiças e restaurando a dignidade da parte ofendida.Desde crianças somos ensinados por pais e professores a pedir e aceitar desculpas, uma vez que nós , seres humanos, somos falíveis e precisamos consertar erros relacionais. A não aceitação de uma desculpa transforma , ironicamente, a vítima no transgressor, porque ela evita que estas reparações sejam feitas.
Existem diferentes categorias de desculpas: desculpas entre indivíduos ( um amigo que foi injusto com outro) ; entre indivíduos e grupos (um executivo pede desculpas por um acidente numa usina), entre grupos (um time de futebol pede desculpas ao outro pela violência da torcida); desculpas nacionais (o governo australiano para seus aborígenes, por ter-lhes roubado a terra)[6]; internacionais ( A Bélgica pede desculpas por genocídio em Ruanda em 1994)[7], desculpas diplomáticas (as desculpas da China ao Japão por apreender o navio a vapor japonês Tatsu Maru em 1908)[8], desculpas históricas ( por crimes contra a humanidade , como por exemplo a Alemanha em 1990 para os judeus, pelos crimes do holocausto)[9].
Talvez em Psicologia pudéssemos acrescentar as desculpas intrapsíquicas, onde a própria pessoa se desculpa por algo errado que fez para si mesmo, para sua vida.
O SURGIMENTO DE UMA ERA DE DESCULPAS
Parece que houve um modismo Internacional nos últimos anos do século passado, com vários pedidos de desculpas sucessivos. Segundo Lazare (2004) foram publicados, de 1990 a 1994, 1193 artigos que continham as palavras “desculpas” ou “pedir desculpas”. Em 1970, o chanceler alemão Willy Brandt ajoelhou-se frente a um memorial para lembrar as vítimas do Holocausto , simbolizando o reconhecimento dos erros do passado e o desejo de reconciliação entre alemães e judeus. Celermajer (2006:17) , apropriadamente, aponta que partir deste momento “a moralidade começa a se tornar uma força política” .
Durante os anos 80 e 90 o papa João Paulo II pediu desculpas por nada menos do que 94 coisas, dentre elas: pelas Cruzadas e Inquisição, pelo obscurantismo científico da igreja, pelo tratamento dispensado a Galileu, pela opressão das mulheres e pelo silencio da Igreja durante o Holocausto. Ele fez estes pedidos como preparação para o novo milênio, pois acreditava que não se pode curar o presente sem fazer reparações pelo passado.
A fig. 1 sumariza alguns pedidos de desculpas diplomáticas e históricas :
Os acadêmicos, incluindo sociólogos, cientistas políticos e estudiosos dos direitos humanos têm tentado compreender o fenômeno da desculpa e reconciliação através de perspectivas políticas, sociais, históricas, religiosas, morais, antropológicas e legais. Por que as desculpas se espalham por toda a comunidade global? Quais são as repercussões políticas dessas desculpas? As desculpas podem ser eficazes? Em caso afirmativo, quais são os componentes que fazem uma desculpa efetiva?
Várias explicações foram dadas para esta alta incidência de desculpas incluindo o surgimento do liberalismo dentro das sociedades democráticas e as revoluções socialistas que promoveram os direitos humanos, com ênfase na paz e na cooperação, em vez de conflitos.Países que se reconstruíram após políticas ditatoriais e repressoras usaram “desculpas” como uma forma de facilitar a cura coletiva da nação e suavizar a transição para uma nova forma de governar. Era preciso promover a cooperação, a paz, a fé no dever moral universal e isto só podia ser feito com a aceitação da responsabilidade pelas injustiças passadas e recentes.
Lazare (2004:16) sugere também que houve uma mudança no equilíbrio de poder, fazendo com que grupos outrora impotentes, começassem a reivindicar seus direitos, lembrando desigualdades e iniquidades do passado. A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas elaborada em 1948, tem seu impacto nesta promoção de remendos nos erros do passado, na medida em que exige que os países das Nações Unidas promovam o respeito universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais em relação à raça, sexo, língua e religião
Outra possível explicação é a globalização da informação através de nossas potentes mídias pois torna impossível que abusos políticos, internacionais e mesmo pessoais permaneçam na obscuridade. É o poder da opinião pública, com um aumento dos grupos de lobby em defesa das vítimas e grupos minoritários. Pedir desculpas muitas vezes é a estratégia usada para voltar a ter acesso à comunidade internacional que retalia o abusador e simpatiza com a vítima.
CULTURA E PERDÃO
Em cada cultura o pedido de desculpas tem uma forma e um peso moral específico, existindo até formas sutis de se pedir desculpas sem se desculpar, ou seja, sem assumir responsabilidade pela dor ou humilhação infringida. No Japão e em todas as culturas mais coletivistas[10] manter as relações interpessoais e a comunidade em harmonia é prioridade. O ato de se desculpar é considerado uma virtude e significa mais do que arrependimento, uma responsabilidade coletiva. É uma cortesia para todos quando uma determinada pessoa admite seu erro publicamente e se responsabiliza por ele, quase uma forma de limpar toda a comunidade de atos semelhantes que possam surgir no futuro. Um exemplo aqui seria o pedido de desculpas da estrela pop japonesa Minami Minegishi após revelações de que ela passou a noite com seu namorado: ela apareceu num vídeo no youtube, com a cabeça raspada, implorando ao público o perdão, em um ato de contrição tradicional.
Já nos Estados Unidos e Europa, onde o individualismo é mais acentuado, os erros são vistos como déficits individuais, redundando em culpa e demandando , muitas vezes, atos de reparação. Muitas empresas não pedem desculpas pelos seus erros, para evitar serem dilapidadas pelos pedidos de indenização. Por outro lado extremamente comovedor foi o ato de Willy Brandt , ex-chanceler alemão, que em 1970, diante do memorial às vítimas do holocausto em Varsóvia, ficou de joelhos, silencioso e de cabeça baixa por cerca de 30 segundos. Ele confessou, depois, que este ato foi totalmente espontâneo, pois lhe faltavam as palavras para dizer o quanto lamentava toda a dor causada pelo erros de guerra alemães.
Na China, a comunicação é frequentemente indireta e sutil. Quando um chefe quer dar uma reprimenda em algum funcionário, por exemplo, ele provavelmente o chamará para uma conversa privada, pedirá desculpas por estar lhe dizendo algo desagradável e fará a crítica. O pedido de desculpas no caso é uma forma de avisar que algo desagradável está por vir. Se alguém pedir desculpas para um chinês em público pode ofendê-lo, pelo excesso de constrangimento presente na cena.
Não há dúvidas que em todas as culturas é importante pedir desculpas, mas quando isto é feito entre culturas diferentes, é preciso levar em conta as distintas convenções sociais, sensibilidades e tradições políticas, além dos diferentes idiomas.
O NÃO PEDIDO DE DESCULPAS [11]
Muitos pedidos de desculpas são gestos vazios, uma expressão de arrependimento ou oferta de empatia, uma espécie de ato político para evitar litígio ou retaliações. Ex: “Lamento que você tenha se ofendido por algo que eu disse” – reparem que não há nenhum sinal de reconhecimento de que algo errado foi feito, apenas que o outro é sensível, talvez até, sensível demais.
Lauren Bloom, autor do livro “The art of Apology” relata um formato de pedido de desculpas condicional que, na realidade, é uma desculpa escorregadia ou uma não-desculpa , pois ninguém se responsabiliza por nada. Vejam:
…..Se eu fiz alguma coisa errada, peço desculpas”;
…. se o que eu disse ofendeu alguém…etc.
Nestes exemplos sarcásticos existe uma arte de falar sem falar e , eventualmente falar o contrário, afim de conseguir ser perdoado sem aceitar culpa alguma. Parte deste questionamento sobre as pseudo-escusas é filosófico pois, teoricamente, só se pode pedir desculpas por algo que cometemos pessoalmente. Muitos governos e empresas tem adotado uma forma genérica de se desculpar, do tipo: “lamentamos a todos aqueles que possam ter se sentido prejudicados….etc. Num exemplo concreto vemos o primeiro-ministro Tony Blair, na véspera do 200º aniversário da proibição da escravidão em navios britânicos dizer : “quão profundamente vergonhoso foi o tráfico de escravos. Também Bill Clinton incorre neste não –pedido pessoal, quando na África, pede desculpas pela inação do mundo todo durante o genocídio em Ruanda.
Pedir desculpas pela nação ou por todos os seres humanos é diferente de pedir desculpas por si mesmo, uma vez que a responsabilidade e a culpa ficam diluídas no tempo e no número de pessoas envolvidas.
Outra forma semântica travestida de remorso ou arrependimento é a voz passiva abstrata, que não identifica autores e ninguém assume a responsabilidade: “erros foram cometidos ….. (no passado ou no presente). Pedir falsas desculpas causa benefícios relativos para as vítimas, uma vez que atende à necessidade básica do ser humano de ter emoções desagradáveis reconhecidas. Quanto aos infratores os benefícios secundários são claros:
- Mudam a forma como os outros os percebem;
- Mantem os relacionamentos que de outra forma seriam prejudicados;
- Evitam litígio e /ou evitam indenizações por negligencia;
- Amenizam uma aparente ofensa ou impedem a sua repetição, com quando uma companhia aérea pede desculpa por um atraso.
Negociadores muitas vezes usam essa tática para acalmar situações tensas: um pedido de desculpas pode desarmar as emoções mesmo quando você não reconhece responsabilidade pessoal na ação ou não admite uma intenção de prejudicar.
Oscar Wilde[12], com sua inteligência mordaz bem apontou: ” Há um luxo na auto-reprovação. Quando nos culpamos, sentimos que ninguém mais tem o direito de nos culpar. É a confissão, não o sacerdote, que nos dá a absolvição “..
EFICÁCIA DAS DESCULPAS ( pessoais, diplomáticas e históricas )
Avaliar um pedido de desculpas não é tarefa fácil. Nas relações interpessoais nunca saberemos à priori como a outra pessoa vai responder , além de expor nossa vulnerabilidade e nos forçar a uma posição de humildade. Muitas pessoas respondem bem ao pedido de desculpas e também ficam vulneráveis permitindo e até melhorando a relação interpessoal; mas outras podem se sentir orgulhosas, e aproveitar este momento para triunfar e ficar arrogantes.
Muitos meses e anos podem se passar antes que um pedido de desculpas resulte numa retomada da relação e, muitos vezes esta retomada nunca acontece, pois pedir desculpas e ser perdoado são ações completamente independentes. A pessoa pode ser perdoada, mas a relação jamais ser retomada, por perda de intimidade e confiança seguras. Se, entretanto, corremos riscos e não temos garantias em relação à reação do outro, pedir desculpas traz muitos benefícios para nós mesmos.
Reconhecer os próprios erros é se fortalecer, é crescer como ser humano , estabelecendo metas de honestidade e dignidade. Reconhecendo o erro não incorremos no perigo de repeti-lo, nem de perpetuá-lo, tiramos o peso da culpa da contraparte, damos exemplos para futuras gerações ( filhos, netos, etc. ) de como a justiça pode ser feita, e, com sorte, não perdemos relações importantes.
Harriet Lerner em “Ciranda da Intimidade” e no recente livro Why want you apologize? estuda profundamente as dificuldades e ganhos pessoais do ato de pedir desculpas e de perdoar.
Pois bem , se nem no nível interpessoal é simples avaliar a eficácia dos pedidos de desculpas, como avaliar situações de conflito que envolvem povos diferentes, raças diferentes e até tempos diferentes, como no caso das desculpas diplomáticas ou históricas.
Testes empíricos e quantitativos estudam esta questão com resultados pouco claros. A maior parte destes estudos foca numa amostragem da população lesada ou em testes laboratoriais que simulam situações onde injustiças são cometidas, coletando os efeitos dos pedidos de desculpas. Outros trabalhos[13] focam na forma linguística e comportamental do pedido de desculpas listando critérios para que um pedido seja mais bem aceito do que outro.
Bobowik, M. & Páez, D. & Arnoso, M. & Cárdenas, M. & R. & Zubieta, E. & Muratori, M. (2017) [14],[15] estudaram, por exemplo, sistematicamente, os efeitos de pedidos desculpas dos governos pós ditatura militar, em 3 países da américa latina: Chile, Argentina e Paraguai. Concluíram que apenas no Chile eles não foram efetivos, pois lá , parte da amostragem mais jovem mostrava-se cética, crítica e sem confiança institucional. Nos outros dois países as desculpas desempenharam um papel de sucesso em contextos de transição, reforçando a confiança e segurança nas instituições. De forma geral estes autores sugerem que as comissões de justiça e reconciliação desempenham um papel bem sucedido como agentes da justiça e facilitadores da transição, reforçando a reconciliação.
Steele, R. R. e Blatz[16], C.W. (2014) estudaram o efeito do pedido de desculpas emocional do então Presidente Clinton para afro-americanos que participaram de uma pesquisa longitudinal sobre sífilis nos E.U.A. (ver tab.1). Concluíram que, mesmo as desculpas mais elaboradas não redundaram em perdão e confiança, conseguindo, no máximo, maiores percepções de remorso e normas de justiça. Outro estudo[17] sugere que, se uma organização violar um contrato psicológico e desejar reparar o relacionamento com a vítima, ela deve se concentrar em oferecer reparações adequadas, pois apenas um pedido de desculpas não aumenta o senso de poder da vítima nem diminui seu desejo de vingança.
A propósito das desculpas históricas, por crimes cometidos contra a humanidade, há, na literatura uma certa ênfase no elemento afetivo , destacando a sinceridade com que são feitas, os sentimentos de auto-reprovação (culpa, vergonha, tristeza) que são expressos e a compensação material para as vítimas. A Alemanha[18] parece ter sido muito melhor sucedida na sua forma de pedir desculpas aos judeus pelo Holocausto do que o Japão pelos seus crimes de Guerra .
Pedidos de desculpas formais, feitos em nome de uma nação correm o risco de desencadear direitos de reparação monetária. A escravidão de negros africanos é o melhor exemplo deste temor, pois nunca recebeu desculpas claras das grandes nações do mundo. Bill Clinton[19]em 1994, numa visita à África chegou perto, reconhecendo que os EUA nem sempre agiram corretamente com os descendentes africanos[20]. Em 2001[21], a Inglaterra foi acusada de impedir que a União Europeia fizesse um pedido de desculpas pelo comércio transatlântico de escravos.
Entre nós, brasileiros, o sistema de quotas universitárias[22] em processos seletivos para ensino superior foi regulamentada pela Lei 12.711/2011, e beneficia o acesso de estudantes da rede pública em instituições de ensino superior federais, com separação de vagas para candidatos de baixa renda, negros e índios. Além disso promove diversas políticas públicas para afrodescendentes visando a criação de oportunidades e a igualdade racial. Possui 65 artigos, sendo que o fator abordado mais importante é a inclusão das comunidades negras em diversos programas e vertentes da sociedade. Mas mesmo este ato reparatório levanta questionamentos e protestos. Nos Estados Unidos um sistema semelhante foi instaurado em 1960 , e abolido em 2007 pela Suprema Corte, com o pressuposto que o sistema de cotas em nada contribui para a igualdade das raças.
No Brasil a inconstitucionalidade da lei, a maquiagem na educação e o reforço do preconceito nas universidades são os argumentos mais usados por quem é contra as cotas.[23] . O historiador e escritor João José Reis[24], franco defensor da Lei das Cotas, assim se expressou na 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) :
“Isso (cotas em universidade federais) é uma migalha diante da exploração a que foi submetida a África durante o
tráfico negreiro. É uma mão que se estende ao continente africano, mas é uma coisa quase que ridícula diante do orçamento nacional”.
Resumindo e para concluir este tópico, há argumentos contra e a favor da pratica de desculpas históricas. Dentre os argumentos contrários destacamos:
- Não se pode julgar a culpa moral do passado pelos padrões do presente;
- Pessoas mortas não podem responder e nem desdizer o pedido de desculpas;
- Muitos políticos usam desculpas sobre o passado como salvo conduto para não agirem no presente.
Qualquer povo que pesquisar seu passado vai encontrar momento sem que foi vítima e outros aonde foi o agressor. Melhor olhar o futuro e fazer justiça daqui para frente. Quanto aos argumentos a favor, os mais relevantes são aqueles que encaram a história da humanidade como um processo em constante mudança, mas com memória e moral.
Abrir feridas do passado reconhecendo erros cometidos é apenas um primeiro passo de cura pública que pode começar com palavras e terminar em ações. É um ato simbólico , um marco, com efeitos poderosos, com ou sem reparação material. Porém seu funcionamento não é mágico, diz Marrus (2006). A dor de danos causados e vidas perdidas em guerras e genocídios não pode ser calada por palavras poderosas ou por dinheiro algum. Desculpas não podem desfazer o que foi feito, mas são preferíveis ao silencio sombrio e rancoroso, pleno de culpa por um lado e desejo de vingança por outro. Mesmo se forem rejeitadas as desculpas possibilitam:
- O reconhecimento das irregularidades;
- Validam reivindicações das vítimas;
- Certificam a responsabilidade;
- Incentivam o diálogo e a reconciliação;
- Reforçam normas positivas, promovendo o repensar de direitos e deveres , ajudando a solidificar um consenso em direitos humanos.
- São a única maneira de limpar o passado para que se possa sonhar com um futuro melhor e aliviar a herança de ódio e culpa que se deixa para futuras gerações.
O QUE TORNA UM PEDIDO DE DESCULPAS EFICIENTE?
Nem todo pedido de desculpas é eficiente. Muitos não contém nenhuma genuinidade ou reconhecimento do erro cometido, como as não–desculpas que citamos em capítulo anterior. O clássico: “ lamento que você tenha se ofendido”, ou “lamento que você tenha me entendido errado” − são exemplos deste tipo de pedido que agride duplamente a vítima: pela ofensa em primeiro lugar e no segundo por ter sido insuficientemente esperta para discernir o verdadeiro significado do que foi dito.
A pesquisa sobre desculpas interpessoais e históricas de Blatz C.W., Schumann K.; Ross M. (2009) sugere que uma desculpa abrangente deveria conter até seis elementos distinto, mas que se complementam:
- Remorso (por exemplo, “Me desculpe”);
- Aceitação de responsabilidade (por exemplo, “É minha culpa”);
- Admissão de injustiça ou comportamento errado (por exemplo, “O que eu fiz estava errado “;
- Reconhecimento de danos e / ou sofrimento das vítimas (por exemplo,” Eu sei que você está chateado “);
- Promessa de agir melhor no futuro (por exemplo,” Eu nunca farei novamente “);
- Oferta de reparação (por exemplo,” Eu pagarei pelos danos).
Cada um destes elementos atende a importantes necessidades psicológicas indicando que o agressor se preocupa com o bem estar das vítimas, reconhece seu sofrimento, absolve-as de qualquer culpa, está empenhado em defender um sistema social legítimo, justo e reparar com dinheiro ou leis os erros do passado. No caso de desculpas governamentais, por crimes contra a humanidade, outros itens podem ser agregados visando reparar, emocionalmente, o narcisismo grupal (Cukier, R., 2001) da maioria jovem, que não participou dos fatos relatados, e da minoria vitimizada:
- Pode-se abordar a baixa consideração social da minoria vitimizada,
- enfatizando as contribuições importantes e únicas deste grupo para a sociedade como um todo. Esses elogios visam confirmar qualidades positivas e demonstrar que as vítimas são valorizadas.
- Pode-se enfatizar que os membros atuais da maioria são irrepreensíveis (nem eram vivos na época em que os erros foram cometidos) minimizando resistências ao pedido de desculpas. Trata-se de elogiar o atual sistema de funcionamento social.
- O texto pode salientar as diferenças marcantes entre o governo atual e o anterior, distanciando e condenando as ações passadas, ressaltando sua visão diferenciada e progressista.
Lewicki, R. J., Polin B., Lountewian R. B. (2016) , da Universidade de Ohio, com uma amostragem de 755 participantes, conseguiram resultados semelhantes, concluindo que um pedido de desculpas é tanto mais efetivo quanto maior for o número de elementos, abaixo citados, que possuir em seu texto:
- Expressão de arrependimento
- Explicação do que foi feito errado
- Reconhecimento de responsabilidade
- Declaração de arrependimento
- Oferta de reparação
- Pedido de perdão
CONCLUSÃO – E O PSICOSOCIODRAMA PODE AJUDAR?
Como vocês puderam ver, este tema é maior do que eu supunha ao me deparar com ele no meio de um Sociodrama. Será que nós psicodramatistas, sociodramatistas, podemos ajudar? Será que o fato de terem pedido desculpas ( ver apêndice 1) num sociodrama, modificou algo nos participantes do nosso workshop?
Sabemos que erros cometidos no passado por nós ou contra nós , por nossa família ou contra nossa família permanecem como “negócios inacabados” na sociedade e no nosso psiquismo. Existe um dano transgeracional , uma vez que o impacto de traumas severos se transmite para sucessivas gerações . (Schutzemberger A. A., 1997). Compartilhar nossas feridas herdadas, nossas lealdades invisíveis ( Nagy, I. B. ,1983), perceber o reflexo destas questões em nossa conduta adulta atual pode sim, acreditamos ser muito benéfico.
Quanto à eficácia do sociodrama nesta questão, teremos que continuar pesquisando. Cada sociodrama terminado sempre abre a perspectiva de novos sociodramas. Por isso quero concluir este artigo prospectando qual direção futuros sociodramas poderiam tomar para continuar agregando conhecimento a esta questão:
- Cada pedido de perdão poderia virar uma vinheta a ser psicodramatizada, onde as várias partes do conflito ganhariam voz;
- As dores listadas poderiam ser categorizadas num próximo sociodrama, dando origem a pequenos grupos: grupos das dores pessoais; grupo das dores familiares, grupo das dores culturais e/ou históricas, grupo das dores religiosas, etc. Uma multiplicação dramática mostraria as diferentes ressonâncias de cada conflito exposto e até poderiam surgir propostas de novos papéis , mediações, etc.;
- Poderíamos começar um sociodrama pedindo a todos que ouçam o pedido de desculpas que mais gostariam de ouvir na vida. A partir daí poderíamos compartilhar em grupo, criar imagens das sensações produzidas e , através de escolhas sociométrica, trabalhar com algumas imagens. Ou ainda pedir que nos ofertassem estes pedidos de desculpas, para que o grupo os encenasse livremente, sob a direção do autor ;
- Ou , ao contrário, poderíamos começar um sociodrama com os pedidos de desculpas que os participantes gostariam ter a coragem de fazer. Várias cenas poderiam ser protagonizadas a partir daí;
- Poderíamos trabalhar com nossa própria Instituição de Psicodrama e ver quais pedidos de desculpas deveriam ser emitidos;
- Poderíamos trabalhar com oferecer ou recusar o perdão e que exigências faríamos para retomar relações difíceis; etc.
- Poderíamos dividir o grupo ao meio: metade jogaria o papel do agressor e metade o da vítima. Após algum tempo de interação e jogo livre pediríamos que invertessem os papéis- a metade vítima se tornaria o agressor e vice –versa. Em seguida um caminhar introspectivo, para que cada um pensasse em sua própria vida e nos reflexos que o jogo agressor-vítima deixa em si.
BIBLIOGRAFIA
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- BLATZ C.W., SCHUMANN K.; ROSS M. (2009)- Government Apologies for Historical Injustices, Political Psychology, Vol. 30, No. 2.
- BLOOM L.(2014) – “The art of Apology” ,Fine & Kahn, U.S.A.
- CELERMAJER, DANIELLE. 2006. “The Apology in Australia: Re-Covenanting the National Imaginary.” In Taking Wrongs Seriously: Apologies and Reconciliation. Elazar Barkan and Alexander Karn. Stanford: Stanford University Press.
- CUKIER, R. (2001)- O Psicodrama Da Humanidade. Utopia , Será? , In, Costa, Ronaldo Pamplona (2001)- Um homem d frente de seu sempo : o psicodrama de Moreno no xeculo XXI, 171-189, Editora Ágora, São Paulo.
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- LERNER, H. (2017)- Why won’t you apologize? Healing big betrayals, Touchstone books,
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- MARRUS R. M.( 2006)- Official Apologies and the Quest for Historical Justice , Munk Centre for International Studies, Toronto, Canadá.
- NAGY BOSZORMENYI I. –Lealtades Invisibles (1983)- Editores Amorrortu- Buenos Aires
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- SCHUTZEMBERGER, ANNE A. (1997)-“ Meus antepassados”, Editora Paulus.
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- VOLKAN V. (2013)- Large-Group-Psychology in Its Own Right: Large-Group Identity and Peace-making, International Journal of Applied Psychoanalytic Studies, Volume 10, Issue 3
September, 210–246.
APÊNDICE 1
PEDIDOS DE DESCULPAS
- Nós, os …… (nome da tribo) pedimos desculpas aos …..(nome da tribo) por termos…..no passado
- Nós, os filhos, pedimos desculpas aos pais, por termos copiado os seus comportamentos no passado.
- Nós, os Maias, pedimos desculpas a todas as outras tribos, por tê-los excluído no passado.
- Nós todos, pedimos desculpas a todos, pelas ofensas do passado.
- Eu, peço desculpas a meu irmão e minha mãe, pelo meu pai, por ter feito o que ele fez a eles, no passado e espero que ele se redima.
- Nós, os brasileiros herdeiros, pedimos desculpas aos brasileiros, por termos permitido a desigualdade social, no passado.
- Nós, os japoneses, pedimos desculpas aos paulistas, por termos mostrado frieza, no passado
- Nós, os português, pedimos desculpas aos negros e índios, por termos maltratado, humilhado e até matado eles no passado.
- Nós, os evangélicos, pedimos desculpas aos outros seguidores de outras religiões, por termos sido intolerantes com as diferenças de pensamento , no passado.
- Nós, os mineiros, pedimos desculpas aos brasileiros, por termos sido sempre passivos, no passado
- Nós, os adultos pedimos desculpas ás crianças, por termos abusado delas, no passado
- Nós, os gaúchos italianos, pedimos desculpas aos “nortistas”, por termos preconceito pela diferença, no passado
- Nós, os homofóbicos, pedimos desculpas aos gays, por termos ofendido, no passado.
- Nós, as famílias X, pedimos desculpas a todos, por termos sido muito exigentes e críticos, no passado
- Nós, os paulistas, pedimos desculpas aos YY e Japoneses, por termos sido preconceituosos, no passado
- Nós, os alemães , pedimos desculpas aos italianos, por termos guerreado com vocês e termos destruído suas casas, histórias e sonhos, no passado
- Nós, os pais, pedimos desculpas aos filhos por termos oprimido, causando inseguranças e medos), no passado.
- Nós, os XYZ pedimos desculpas a filha, por termos desejado destruir a imagem que ela tinha do pai, no passado.
- Nós, os mineiros pedimos desculpas aos brutos, por termos tanta agressividades, falta de amor e afeto, no passado.
- Nós, os nordestinos tradicionais do interior, pedimos desculpas à humanidade, por termos atuado com preconceito velado contra eles, no passado.
- Nós, de origem nordestina, pedimos desculpas aos negros e mulheres, por vários tipos de violência e racismo que expressamos, no passado.
- Nós, os descendes de italianos, pedimos desculpas aos nordestinos, negros, pobres, homossexuais, por tê-los rebaixado, ridicularizado e condenado no passado.
- Nós, os baianos pedimos desculpas aos negros e índios, por termos explorado, maltratado no passado.
- Nós os mineiros, pedimos desculpas aos baianos, por termos humilhado dentro da igreja no passado.
- Nós, pais nordestinos, pedimos desculpas aos nossos filhos, por termos sido autoritários e opressores no passado.
- Nós, os paulistanos, pedimos desculpas aos estrangeiros, por termos tratado vocês de forma diferente e hierarquizado no passado
- Nós, brasileiros, pedimos desculpas aos indígenas, por termos queimado e maltratado indígenas no passado.
- Nós, os judeus, pedimos desculpas aos palestinos por estarmos tirando sua terra. Nada no passado justifica nossa atitude.
- Nós, os avós judeus, pedimos desculpas às novas gerações, por termos perpetuado a ideia de que a união entre judeus é sempre melhor.
- Nós, os judeus, pedimos desculpas aos árabes, por termos promovido matanças, no passado e presente.
- Nós, os homens pedimos desculpas as mulheres, por termos desrespeitado no passado .
- Nós, os homens pedimos desculpas as mulheres, por termos oprimido, segregado e desvirtuado seus valores no passado
- Nós, os ciumentos pedimos desculpas aos iluminados, por termos censurados e importunado sua liberdade no passado
- Nós, os religiosos cristãos, pedimos desculpas às crianças, por termos decepcionado elas no passado.
- Nós, os espiritas, pedimos desculpas aos evangélicos, por insultá-los e discriminá-los, no passado.
- Nós, os torcedores agressivos, pedimos desculpa aos torcedores em geral, por termos provocado violência no passado.
- Nós, alegria, pedimos desculpas a alegria, por termos – sermos egoístas, no passado.
- Nós, os “amigos”, pedimos desculpas aos amigos, por termos feito tanto mal à você e ter afetado tanto sua vida, no passado
- Nós, os criativos, pedimos desculpas aos científicos, por não termos dado a atenção que mereciam no passado.
- Nós, os professores, pedimos desculpas aos alunos(as), por termos humilhado vocês, no passado
- Nós, os exigentes, pedimos desculpas aos livres, por termos exigido que eles fossem perfeitos e nunca errassem no passado
- Nós, os superiores, pedimos desculpas aos “inferiores”, por termos humilhado, segregado, ofendido, no passado
- Nós pais, pedimos desculpas aos filhos, por não termos valorizado o lugar de cada um membro desta família no passado.
- Nós, os Pais, pedimos desculpas aos filhos, por termos sido autoritários e opressivos no passado
- Nós, s família FFF, pedimos desculpas por termos dado mais valor às coisas materiais do que às pessoas no passado
- Nós, as mães, pedimos desculpas aos filhos, por termos descontado nossos problemas neles no passado.
- Nós, os Cintra pedimos desculpas à Vó, por termos rompido com ela no passado.
- Nós, os antepassados, pedimos desculpas aos novos familiares, por termos perpetuado uma cultura crítica , de julgamento no passado
- Nós, as matriarcas, pedimos desculpas aos filhos, por termos omitido o homem e o masculino.
- Nós, os Brutos, pedimos desculpas aos mineiros, por termos sido tão brutos, ignorantes, orgulhosos e violentos no passado.
- Nós, os administradores, pedimos desculpas aos trabalhadores, por termos sido filhos incompetentes e prepotentes no passado
- Nós, os silenciadores, pedimos desculpas aos que tem voz, por termos tolhido a voz dos que tinham coragem no passado
[1] Psicóloga, psicodramatista didata supervisora, pela SOPSP. Mestre em psicologia social, pela PUCSP. Professora do curso de Formação em Psicodrama convênio SOPSP-PUCSP. Atendimento psicoterapêutico adulto, casal e família. Consultoria em Escolas, Empresas, Instituições. Pesquisadora sobre Psicodrama e relações interétnicas.
[2] Cristine G. Massoni -Psicóloga (Mackenzie-SP), Psicoterapeuta, Psicodramatista-didata, professora-supervisora em formação na Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP).
[3] Cukier, R.- Sobrevivência Emocional: as dores da infância revividas no drama adulto, Editora Ágora, 1998
[4] Cukier, R. – em “Psicodrama Da Humanidade. Um Homem Á Frente De Seu Tempo. O Psicodrama De Moreno No Século XXI, Editora Agora, 2001
[6]http://www.aph.gov.au/About_Parliament/Parliamentary_Departments/Parliamentary_Library/FlagPost/2017/February/Apology_Day_2017
[7] http://www.folhadelondrina.com.br/geral/belgica-pede-desculpas-pela-inacao-mundial-no-genocidio-de-ruanda-br-font-size-279649.html
[8]http://query.nytimes.com/gst/abstract.html?res=9A0DE7DF1331E233A2575AC0A9659C946997D6CF&legacy=true
[9] https://www.thetrumpet.com/5027-angela-merkels-historic-holocaust-speech-but-does-the-pope-agree
[10] http://psicologiaevoaplicada.blogspot.com.br/2014/06/coletivismo-versus-individualismo.html
[11] https://pt.wikipedia.org/wiki/Não_desculpa
[12] Wilde, Oscar (2012)- O Retrato de Dorian Gray, editora Penguin E Companhia Das Letras (1°edição 1989) .
[13] https://fisher.osu.edu/news/how-apologize-according-science
[14] Bobowik, Magdalena & Páez, Darío & Arnoso, Maitane & Cárdenas, Manuel & Rimé, Bernard & Zubieta, Elena & Muratori, Marcela. (2017). Institutional Apologies and Socio-emotional Climate in the South American Context. British Journal of Social Psychology. . 10.1111/bjso.12200.
[15] Cardenas, M., Paez D., Arnoso M., E Rime, B. ( 2013) The Perception of the Socio-emotional Climate and Institutional Trust in Victims of Political Violence: Impact Assessment of the National Commission of Truth and Reconciliation. Psykhe [online]. 2013, vol.22, n.2, pp.111-127. ISSN 0718-2228. http://dx.doi.org/10.7764/psykhe.22.2.572.
[16] Steele, R. R. e Blatz (2014)- Faith in the Just Behavior of the Government: Intergroup Apologies and Apology Elaboration, Journal of Social and Political Psychology, vol.2, n° 1.
[17] Alongi A. (2011) -Effects of group apology and reparation after breach of psychological contract, http://scholarworks.rit.edu/theses/1374/
[18] https://www.washingtonpost.com/news/worldviews/wp/2015/08/13/germany-won-respect-by-addressing-its-world-war-ii-crimes-japan-not-so-much/?utm_term=.e62c76045aea
[19] https://www.haaretz.com/world-news/.premium-1.814785
[20] Estima-se que cerca de 900 mil negros africanos vieram para a América no século 16, 2,75 milhões no século 17, 7 milhões no 18º e mais de 4 milhões no 19º – talvez 15 milhões no total. Um verdadeiro Holocausto negro. http://abhmuseum.org/what-is-the-black-holocaust/
[21] https://www.theguardian.com/world/2001/sep/03/race.uk
[22] http://sistema-de-cotas.info
[23] http://vestibular.mundoeducacao.bol.uol.com.br/cotas/argumentos-contra-as-cotas.htm
[24] https://g1.globo.com/pop-arte/flip/2017/noticia/historiador-defende-cota-racial-e-critica-escravidao-contemporanea-e-reforma-trabalhista.ghtml